segunda-feira, 3 de junho de 2013

A VELHICE DO PADRE ETERNO GUERRA JUNQUEIRO... E O QUE MUDOU?

A Velhice do Padre
Eterno
Junqueiro, Abílio Manuel Guerra,
1850-1923
Release date: 2007-11-17
Source: Bebook
*Nota de editor:* Devido 􏿽quantidade de
erros tipogr􏿽icos existentes neste texto,
foram tomadas v􏿽ias decis􏿽s quanto 􏿽
vers􏿽 final. Em caso de d􏿽vida, a grafia foi
mantida de acordo com o original. No
final deste livro encontrar􏿽a lista de erros
corrigidos.
Rita Farinha (Nov. 2007)
GUERRA JUNQUEIRO
A VELHICE DO PADRE ETERNO
EDITORA LIVRARIA MINERVA
LISBOA
GUERRA JUNQUEIRO
A VELHICE DO PADRE ETERNO
EDITORA LIVRARIA MINERVA
LISBOA
􏿽MEMORIA DE Guilherme D'Azevedo
A Eza de Queiroz
INDICE
Aos simples 9 A vinha do Senhor 17
A Caridade e a Justi􏿽 25 O Pap􏿽 30
Parasitas 31 Resposta ao Sillabus 33
O Baptismo 37 Eurico 38 A Arvore
do Mal 39 A Semana Santa 43 A
Barca de S. Pedro 61 Ladainha 63
Como se faz um monstro 65 Calembour
70 A agua de Lourdes 71 Antonelli
73 O Dinheiro de S. Pedro 75 Ao
nuncio Masella 77 Ladainha moderna
85 O Melro 89 Circular 103 A
ben􏿽o da locomotiva 109 A Hidra
111 A Valla commum 113 A S􏿽ta do
senhor abade 127 O Genesis 142
Fantasmas 145 Post-Scriptum 149
AOS SIMPLES
􏿽almas que viveis puras, immaculadas Na
torre do luar da gra􏿽 e da illus􏿽, V􏿽 que
ainda conservaes, intactas, perfumadas, As
rosas para n􏿽 ha tanto desfolhadas Na
aridez sepulchral do nosso cora􏿽o; Almas,
filhas da luz das manh􏿽 harmoniosas, Da
luz que acorda o ber􏿽 e que entreabre as
rosas, Da luz, olhar de Deus, da luz, ben􏿽o
d'amor, Que faz rir um nectario ao p􏿽de
cada abelha, E faz cantar um ninho ao
p􏿽de cada flor; Almas, onde resplende,
almas, onde se espelha A candura
innocente e a bondade christ􏿽 Como n'um
c􏿽 d'Abril o arco da allian􏿽, Como n'um
lago azul a estrella da manh􏿽 Almas, urnas
de f􏿽 de caridade, e esp'ran􏿽, Vasos d'oiro
contendo aberto um lirio santo, Um lirio
immorredoiro, um lirio alabastrino, Que os
anjos do Senhor vem orvalhar com pranto,
E a piedade florir com seu clar􏿽 divino;
Almas que atravessaes o lodo da
existencia, Este lodo perverso, iniquo,
envenenado, Levando sobre a fronte o
esplendor da innocencia, Calcando sob os
p􏿽 o drag􏿽 do peccado; Bemdictas sejaes,
v􏿽, almas que est'alma adora, Almas cheias
de paz, humildade e alegria, Para quem a
consciencia 􏿽o sol de toda a hora, Para
quem a virtude 􏿽o p􏿽 de cada dia! Sois
como a luz que doira as trevas d'um
monturo, Ficando sempre branca a sorrir e
a cantar; E tudo quanto em mim ha de
bello ou de puro. --Desde a esmola que eu
dou 􏿽prece que eu murmuro-- 􏿽vosso:
fostes v􏿽 o meu primeiro altar. L􏿽da minha
distante e encantadora infancia, D'esse
ninho d'amor e saudade sem fim,
Chega-me ainda a vossa angelica
fragrancia Como uma harpa 􏿽lia a cantar a
distancia, Como um v􏿽 branco ao longe
inda a acenar por mim!
..................................................
..................................................
.................................................. Minha m􏿽,
minha m􏿽! ai que saudade immensa, Do
tempo em que ajoelhava, orando, ao p􏿽de
ti. Cahia mansa a noite; e andorinhas aos
pares Cruzavam-se voando em torno dos
seus lares, Suspensos do beiral da casa
onde eu nasci. Era a hora em que j􏿽sobre
o feno das eiras Dormia quieto e manso o
impavido lebr􏿽. Vinham-nos das
montanhas as can􏿽es das ceifeiras, Como
a alma d'um justo, ia em triumpho ao c􏿽!...
E, m􏿽s postas, ao p􏿽do altar do teu rega􏿽,
Vendo a lua subir, muda, alumiando o
espa􏿽, Eu balbuciava a minha infantil
ora􏿽o, Pedindo a Deus que est􏿽no azul do
firmamento Que mandasse um allivio a
cada soffrimento, Que mandasse uma
estrella a cada escurid􏿽. Por todos eu
orava e por todos pedia. Pelos mortos no
horror da terra negra e fria, Por todas as
paix􏿽s e por todas as magoas... Pelos
m􏿽eros que entre os uivos das procellas
V􏿽 em noite sem lua e n'um barco sem
vellas Errantes atravez do turbilh􏿽 das
aguas. O meu cora􏿽o puro, immaculado e
santo Ia ao throno de Deus pedir, como
inda vae, Para toda a nudez um panno do
seu manto, Para toda a miseria o orvalho
do seu pranto E para todo o crime o seu
perd􏿽 de Pae!...
..................................................
.................................................. A minha
m􏿽 faltou-me era eu pequenino, Mas da
sua piedade o fulgor diamantino Ficou
sempre aben􏿽ando a minha vida inteira
Como junto d'um le􏿽 um sorriso divino,
Como sobre uma forca um ramo d'oliveira!
* * * * *
􏿽crentes, como v􏿽, no intimo do peito
Abrigo a mesma cren􏿽 e guardo o mesmo
ideal. O horisonte 􏿽infinito e o olhar
humano 􏿽estreito: Creio que Deus 􏿽eterno
e que a alma 􏿽immortal.
Toda a alma 􏿽clar􏿽 e todo o corpo 􏿽lama.
Quando a lama apodrece inda o clar􏿽
scintilla: Tirae o corpo--e fica uma lingoa
de chamma... Tirae a alma--e resta um
fragmento d'argila.
E para onde vae esse clar􏿽? Mysterio... N􏿽
sei... Mas sei que sempre ha-de arder e
brilhar, Quer tivesse incendiado o craneo
de Tiberio, Quer tivesse aureolado a
fronte de Joanna Darc.
Sim, creio que depois do derradeiro
somno Ha-de haver uma treva e ha-de
haver uma luz Para o vicio que morre
ovante sobre um throno, Para o santo que
expira inerme n'uma cruz.
Tenho uma cren􏿽 firme, uma cren􏿽 robusta
N'um Deus que ha-de guardar por sua
propria m􏿽 N'uma jaula de ferro a alma de
Lucusta, N'um relicario d'oiro a alma de
Plat􏿽.
Mas tambem acredito, embora isso vos
peze, E me julgueis talvez o maior dos
atheus, Que no universo inteiro ha uma
s􏿽diocese E uma s􏿽cathedral com um
s􏿽bispo--Deus.
E muito embora a vossa egreja se contriste
E a excommunh􏿽 papal nos abraze e
destrua, A analyse 􏿽feroz como uma lan􏿽
em riste E a verdade cruel como uma
espada nua.
Cultos, religi􏿽s, biblias, dogmas,
assombros, S􏿽 como a cinza v􏿽que
sepultou Pompeia. Exhumemos a f􏿽d'esse
mont􏿽 de escombros, Desentulhemos
Deus d'essa aluvi􏿽 de areia.
E um dia a humanidade inteira, oceano em
calma, Ha-de fazer, na mesma aspira􏿽o
reunida, Da raz􏿽 e da f􏿽os dois olhos da
alma, Da verdade e da cren􏿽 os dois polos
da vida.
A cren􏿽 􏿽como o luar que nas trevas
fluctua; A raz􏿽 􏿽do c􏿽 o explendido pharol:
Para a noite da morte 􏿽que Deus nos deu
lua... Para o dia da vida 􏿽que Deus fez o
sol.
* * * * *
Mas, ai eu comprehendo os martyrios
secretos Do pobre camponez, j􏿽quasi
secular, Que v􏿽tombar por terra o seu
ninho de affectos, A casa onde nasceu seu
pae, e onde os seus netos Lhe fechariam,
morto, o escurecido olhar. Comprehendo
o pavor e a lividez tremente De quem em
noite m􏿽 caliginosa e fria Atravessa a
montanha 􏿽luz d'um facho ardente E uma
rajada vem alucinadamente Apagar-lh'o
c'o'a aza athletica e sombria, Deixando-o
fulminado e quazi sem sentidos A ouvir o
ulular das feras e os bramidos Do ciclone
que explue rouco do sorvedoiro E se
enrosca furioso aos platanos partidos A
estrangulal-os, como uma giboia um toiro.
Comprehendo a agonia, o desespero
insano Do naufrago na rocha, entre o
abysmo do oceano, Vendo rolar, rugir os
glaucos vagalh􏿽s Como uma cordilheira
herculea de montanhas, Com jaulas
collossaes de bronze nas entranhas, E um
domador l􏿽dentro a chicotear trov􏿽s.
..................................................
.................................................. O vosso
facho, o vosso abrigo, o vosso porto, 􏿽um
Deus que para n􏿽 ha muito que est􏿽morto,
E que inda imaginaes no entretanto
immortal. Vivei e adormecei n'essa cren􏿽
illusoria, J􏿽n􏿽 podeis transp􏿽 os mil annos
da historia Que v􏿽 do vosso credo absurdo
ao nosso ideal. Vivei e adormecei n'essa
illus􏿽 sagrada, Fitando at􏿽morrer os olhos
de Jesus, Como o ephemero v􏿽 que dura
um quasi nada, Que nasce de manh􏿽n'um
raio d'alvorada, E expira ao p􏿽 do sol
n'outro raio de luz. Eu bem sei que essa
cren􏿽 ignorante e sincera, N􏿽 􏿽a que
illumina as bandas do Porvir. Mas v􏿽 sois o
Passado, e a cren􏿽 􏿽como a hera Que
sustenta e d􏿽inda um tom de primavera
Aos velhos torre􏿽s gothicos a cahir. Sim,
essa cren􏿽 􏿽um erro, uma illus􏿽, 􏿽certo;
Mas triste de quem vae pelo areal deserto
Vagabundo, esfa􏿽ado e n􏿽 como Caim,
Sem nunca ver ao longe os palacios
radiantes D'uma cidade d'oiro e marmore
e diamantes No chimerico azul d'essa
amplid􏿽 sem fim! Quem ha-de arrancar
pois do seu piedoso engaste O vosso
ingenuo ideal, 􏿽tremulos velhinhos, Se a
chimera 􏿽uma rosa e a existencia uma
haste, Rosa cheia d'aroma e haste cheia de
espinhos! Quem vos ha-de cortar a flor da
vossa esp'ran􏿽, Quem vos ha-de apagar a
angelica vis􏿽, Se essa luz para v􏿽 􏿽como
uma crean􏿽 Que guia n'uma estrada um
c􏿽o pela m􏿽! Quem vos ha-de acordar
d'esse sonho encantado?! Quem vos ha-de
mostrar a evidencia cruel?! Ah! deixemos
a ave ao ramo j􏿽quebrado, E deixemos
fazer ao enxame doirado No tronco que
est􏿽morto o seu favo de mel! 􏿽velhos
alde􏿽s, exhaustos de fadiga, Que andaes
de sol a sol na terra a mourejar,
Roubar-vos da vos'alma a vossa cren􏿽
antiga Seria como quem roubasse a uma
mendiga As tres achas que leva 􏿽noite
para o lar! Oh, n􏿽! guardae-a bem essa
cren􏿽 d'outrora; 􏿽ella quem vos d􏿽a paz
benigna e santa, Como a paz d'um vergel
inundado d'aurora, Onde o trabalho ri e
onde a miseria canta. Guardae-a sim,
guardae! E quando a morte em breve Vos
entre na choupana esqualida e feroz, A
agonia ser􏿽bem rapida e bem leve,
Porque um anjo de Deus mais alvo do que
a neve Ha-de estender sorrindo as azas
sobre v􏿽. E v􏿽 conhecereis em seu olhar
materno Que 􏿽o anjo que emballou vosso
somno infantil, E que hoje vem do c􏿽
mandado pelo Eterno, Para sorrir na morte
ao vosso branco inverno, Como sorriu no
ber􏿽 ao vosso claro Abril.
E ao pender-vos gelada a vossa fronte
alabastrina Ir􏿽levar a Deus o vosso cora􏿽o,
T􏿽 manso e virginal, t􏿽 novo e t􏿽 perfeito,
Que Deus ha-de beijal-o e aquecel-o no
peito, Como se acaso fosse uma pomba
divina, Que viesse cahir-lhe exanime na
m􏿽!
A VINHA DO SENHOR
I
Existiu n'outro tempo uma vinha piedosa
Doirada pelo sol da alma de Jesus, Uma
vinha que dava uns fructos c􏿽 de roza,
Vermelhos como o sangue e puros como a
luz.
Inundavam-n'a d'agua os olhos de Maria, E
os virgens cora􏿽es dos martyres, dos
crentes Eram a terra funda aonde se
embebia A mystica raiz dos pampanos
virentes.
Produzia um licor balsamico, divino, Que
aos c􏿽os dava luz, aos tristes dava
esp'ran􏿽, E que fazia ver na areia do
destino A miragem feliz da
bemaventuran􏿽.
Aos mortos restituia o movimento e a falla;
Escravisava a carne, as tenta􏿽es, a d􏿽, E
transformou em santa a impura de
Magdala, Como transforma Abril um
verme n'uma fl􏿽.
Bebel-o era beber uma virtuosa essencia
Que ungia o cora􏿽o de perfumes ideaes,
Pondo no labio um riso ingenuo de
innocencia, Como o d'agua a correr,
virgem, dos mananciaes.
Dava um tal explendor 􏿽 almas, tal pureza
Que nos Circos de Roma at􏿽se viu baixar
Diante da nudez das virgens sem defeza
Ao magro le􏿽 da Nubia o curuscante olhar.
II
Mas passado algum tempo a humanidade
inteira De tal modo gostou d'esse licor
sublime, Que o extasis christ􏿽 tornou-se
em bebedeira, E o sonho em pezadello, e
o pezadello em crime.
Nas solid􏿽s do claustro as virgens
inflamadas Co'as fortes atrac􏿽es da mistica
ambrozia Torciam-se febris, convulsas,
desvairadas, Meretrizes de Deus n'uma
piedosa orgia.
􏿽que no vinho antigo ia 􏿽noite o demonio
Lan􏿽r co'a garra adunca uma infernal
mistura De mandragora e opio e helleboro
e stramonio, Verdenegro e viscoso
extracto de loucura.
Quando uivava de noite o vento nas
campinas Via-se pela sombra, obliquo,
Satanaz, Colhendo aos p􏿽 da forca ou
buscando entre as ruinas Hervas,
vegeta􏿽es, prenhes de essencias m􏿽.
Era o filtro subtil d'essas plantas de morte
Que fazia da alma um derviche
incoherente, Uma bussola doida 􏿽procura
do norte Uma c􏿽a a tatear no vacuo,
anciosamente!...
E a ta􏿽 do veneno estonteador e amargo
No funebre banquete ia de m􏿽 em m􏿽,
Produzindo o delirio, a syncope, o
lethargo E em cada olhar sinistro uma
cruel vis􏿽.
Uns viam a espectral sarabanda frenetica
De esqueletos a rir e a dan􏿽r com furor Em
torno 􏿽Morte podre, impudente,
epileptica, Com dois ossos em cruz
rufando n'um tambor.
Outros viam chegado o pavoroso instante
Em que um monstro do fogo, um drag􏿽
areolito, Dava na terra um n􏿽c'oa cauda
flammejante, Arrebatando-a, a arder,
atravez do infinito.
E ent􏿽 para fugir ao desespero e ao panico
Bebiam com mais ancia o filtro singular.
At􏿽􏿽epilepsia, ao turbilh􏿽 tetanico Do
sabat desgrenhado e erotico, a espumar!
E 􏿽for􏿽 de beber o tragico veneno
Tombou por terra exhausta a humanidade
emfim, Como em Londres, de noite, ao
p􏿽d'um antro obsceno C􏿽 sob a lama
inerte um bebado de gim.
III
Mas n'isto despontou a esplendida
manh􏿽D'um mundo juvenil, robusto,
afrodisiaco: A Renascen􏿽 foi para a
embriaguez christ􏿽A excita􏿽o vital d'um
frasco de amoniaco.
E na vinha de Deus ainda florescente
Come􏿽u a nascer por essa occasi􏿽 Um
bicho que enterrava escandalosamente
Nos pampanos da cren􏿽 as unhas da raz􏿽.
Propagou-se o flagello; o mal recrudesceu;
A colheita ficou em duas ter􏿽s partes;
Chega o oidium Lutero, o verme Galileu, E
cai-lhe o temporal de Newton e Descartes.
Em balde Carlos nove, Ignacio e
Torquemada, Catando esses pulg􏿽s das
b􏿽licas videiras, Os entregam 􏿽roda, ao
cadafalso, 􏿽espada, Ou os queimam por
junto aos centos nas fogueiras.
O estrago cada vez era maior, mais forte;
Apezar da realeza, o throno e a sachristia
Andarem sacudindo o enxofrador da
morte No formigueiro vil das pragas da
heresia.
Por ultimo Voltaire--filoxera invade Essa
encosta plantada outr'ora por Jesus, E das
cepas ideaes da escura meia idade
Ficaram simplesmente uns velhos troncos
n􏿽s.
IV
Mas como havia ainda alguns
consumidores D'esse vinho que o sol
deixou de fecundar, Uns velhos cardeaes,
habeis exploradores, Reuniram-se em
concilio afim de os imitar.
E 􏿽assim que Antonelli, o verdadeiro
papa, O chimico da f􏿽 um grande
industrial, Fabrica para o mundo ingenuo
uma zurrapa Que elle assevera que 􏿽o
antigo vinho ideal.
Para isso combina os varios elementos
Que comp􏿽m esta droga: o nome de
Maria, Anjos e cherubins, infernos e
tormentos, Bastante estupidez e immensa
hypocrizia.
P􏿽 isto tudo a ferver, liga, combina, mexe,
E, filtrando atravez d'uns textos de latim,
Eis preparado o vinho, ou antes o
campeche, Que a sa􏿽de da alma hade
arruinar por fim.
Mas como o paladar de muitos europeus
Quasi prefere j􏿽(horrivel impiedade!)
􏿽falsifica􏿽o do vinho do bom Deus O vinho
genuino e puro da verdade;
E como j􏿽por isso, (assim como era
d'antes) A Igreja n􏿽 nos queime e o rei n􏿽
nos enforque, A curia procurou mercados
mais distantes, O Jap􏿽, o Per􏿽, a Australia e
Nova York.
Os _comis-voiageurs_ de Roma--os
Lazaristas Com as carrega􏿽es v􏿽 atravez
do oceano, Por toda a parte abrindo os
armazens papistas, A fim de dar consumo
ao vinho ultramontano.
Em cada igreja existe uma taberna franca
Para impingir a tal mixordia, o tal horror,
Ou secca ou doce, ou velha ou nova, ou
tinta ou branca, Segundo as condi􏿽es e a
f􏿽do bebedor.
Para Hespanha v􏿽 muito uns vinhos
infernaes, Um veneno explosivo e forte
que produz Um delirio tremente--o
General Narvaes, E um vomito de
sangue--o cura Santa Cruz.
Portugal quer vinagre. A Italia quer
falerno. Veuillot quer agua-raz que ponha
a lingua em braza. E John Bull, por
exemplo, um pouco mais moderno, Manda
ao diabo a botica, e faz a droga em casa.
Ao povo, esse animal, que o Padre Eterno
monta, Como 􏿽pobre, coitado, ent􏿽 a Santa
S􏿽Fabrica lhe uma borra incrivel, muito
em conta, Um pouco de mela􏿽 e um pouco
d'agua-p􏿽
A fina fl􏿽 christ􏿽 a fl􏿽 altiva e nobre, O rico
sangue azul do bairro S. Germano, Para
quem o bom Deus 􏿽um gentil-homem
pobre A quem se d􏿽de esmola alguns
milh􏿽s por anno.
Essa como detesta os vinhos maus,
baratos, Como 􏿽de ra􏿽 illustre e debil
complei􏿽o, Mandam-lhe um elixir que
serve para os flatos, Ou para p􏿽 no len􏿽 ao
ir 􏿽communh􏿽.
De resto ha quem, bebendo essa tisana
impura, Sinta a impress􏿽 que outr'ora o
nectar produzia. S􏿽 milagres da f􏿽 Ditosa a
creatura Que no ruibarbo encontra o sabor
da ambrosia.
E eu n􏿽 vos vou magoar, 􏿽almas c􏿽 de rosa
Que inda achaes neste vinho o
esquecimento e a paz! N􏿽 insulto quem
bebe a droga venenosa; Accuso
simplesmente o charlat􏿽 que a faz.
A CARIDADE E A JUSTI􏿽
No topo do calvario erguia-se uma cruz, E
pregado sobre ella o corpo do Jesus, Noite
sinistra e m􏿽 Nuvens esverdeadas Corriam
pelo ar como grandes manadas De
bufalos. A lua ensanguentada e fria, Triste
como um solu􏿽 immenso de Maria, Lan􏿽va
sobre a paz das coizas naturaes A
merencoria luz feita de brancos ais. As
arvores que outr'ora em dias de calor
Abrigaram Jesus, cheias de magua e d􏿽,
Sonhavam, na mudez herculea dos heroes.
Deixaram de cantar todos os rouxinoes,
Um silencio pesado amortalhava o mundo.
Unicamente ao longe o velho mar
profundo Descantava chorando os psalmos
da agonia. Jesus, quasi a expirar, cheio de
d􏿽, sorria. Os abutres crueis pairavam
lentamente A farejar-lhe o corpo; 􏿽 vezes
de repente Uma nuvem toldava a face do
luar, E um clar􏿽 de gangrena, estranho,
singular, Lan􏿽va sob a cruz uns tons
esverdeados. Crucitavam ao longe os
corvos esfaimados; Mas passado um
instante a lua branca e pura Irrompia outra
vez da grande nevoa escura, E
inundavam-se ent􏿽 as chagas de Jesus Nas
pulverisa􏿽es balsamicas da luz.
No momento em que havia a grande
escurid􏿽, Christo sentiu alguem
aproximar-se, e ent􏿽 Olhou e viu surgir no
horror das trevas mudas O cobarde perfil
sacrilego de Judas. O traidor,
contemplando o olhar do Nazareno, T􏿽
cheio de desdem, t􏿽 nobre, t􏿽 sereno,
Convulso de terror fugiu... Mas nesse
instante Surgiu-lhe frente a frente um vulto
de gigante, Que bradou:
--􏿽chegado emfim o teu castigo O
traidor teve medo e balbuciou:
--Amigo, Que pretendes de mim?
dize, por quem esperas? Quem 􏿽 tu?--
--􏿽O Remorso, um ca􏿽dor de f􏿽as,
Disse o gigante. Eu ando ha mais de seis
mil annos A ca􏿽r pelo mundo as almas dos
tiranos, Do traidor, do ladr􏿽, do vil, do
scelerado; E depois de as prender
tenho-as encarcerado Na enormissima
jaula atroz da expia􏿽o. E quando eu entro
ali na immensa confus􏿽 De tigres, de le􏿽s,
d'abutres, de chacaes, De rugidos febris e
de gritos bestiaes, Fica tudo a tremer,
quieto de horror e espanto. Caim baixa a
pupilla e vai deitar-se a um canto. E
quando em summa algum dos monstros
quer luctar Azorrago-o co'a luz febril do
meu olhar, Dando-lhe um pontap􏿽 como
n'um c􏿽 mendigo. J􏿽sabes quem eu sou,
Judas; anda comigo!􏿽
Como um preso que quer comprar um
carcereiro, Judas tirou do manto a bol􏿽 do
dinheiro, Dizendo-lhe:
--Aqui tens, e deixa-me partir...
O gigante fitou-o e come􏿽u a rir.
Houve um grande silencio. O infame
Iskariote, Como um negro que v􏿽a ponta
d'um chicote, Tremia. Finalmente o vulto
respondeu:
􏿽Judas, podes guardar esse dinheiro; 􏿽teu.
O oiro da trai􏿽o pertence-lhe ao traidor,
Como o riso 􏿽innocencia e como o aroma
􏿽fl􏿽. Esse oiro 􏿽para ti o eterno pesadello.
Oh! guarda-o, guarda-o bem, que eu
quero derretel-o, E lan􏿽r-t'o depois
caustico, vivo, ardente, Lan􏿽r-t'o gota a
gota, inexoravelmente Em cima da
consciencia, a pudrida, a execravel! Com
elle hei de fundir a algema
inquebrantavel, A grilheta que a tua
esqualida memoria Trar􏿽 arrastar􏿽pelas
gal􏿽 da Historia, Durante a eternidade
illimitada e calma. Essa bolsa que ahi tens
􏿽o cancro da tua alma: J􏿽se agarrou a ti,
ligou-se ao criminoso, Como a lepra
nojenta ao peito do leproso, Como o iman
ao ferro e o verme 􏿽podrid􏿽. N􏿽 poder􏿽
j􏿽ais largal-a da tua m􏿽! 􏿽 traidor,
assassino, hypocrita, perjuro; A tua alma
lan􏿽da em cima d'um monturo Faria
nodoa. 􏿽 tudo o que ha de mais vil, Desde
o ventre do sapo 􏿽baba do reptil. Sahe da
existencia! dize 􏿽sombra que te acoite.
Monstro, procura a paz! verme, procura a
noite! Que o sol n􏿽 veja mais um unico
momento O teu olhar obliquo e o teu perfil
nojento. Esse crime, bandido, 􏿽um crime
que profana, Todas as grandes leis da vida
universal. Esconde-te na morte, assim
como um chacal No seu covil. Adeus,
causas-me nojo e asco. Deixo dentro de ti,
Judas, o teu carrasco! 􏿽 livre; adeus.
J􏿽brilha o astro matutino, E eu, ca􏿽dor
feroz, cumprindo o meu destino,
Continuarei ca􏿽ndo os javalis nos matos.􏿽
E dito isto partiu a procurar Pilatos.
Vinha rompendo ao longe a fresca
madrugada. Judas, ficando s􏿽 meteu-se
pela estrada, Caminhando ligeiro,
impavido, terrivel, Como um homem que
leva um fim imprescriptivel Uma ideia
qualquer, heroica e sobranceira; De
repente estacou. Havia uma figueira
Projectando na estrada a larga sombra
escura; Judas, desenrolando a corda da
cintura, Subiu acima, atou-a a um ramo
vigoroso, Dando um la􏿽 􏿽garganta. O seu
olhar odioso Tinha n'esse momento um
brilho diamantino, Recto como um juiz,
forte como um destino.
N'isto echoou atravez do negro c􏿽
profundo A voz celestial de Jesus
moribundo, Que lhe disse:
--􏿽Traidor, concedo-te o perd􏿽. Al􏿽 de
meu carrasco 􏿽 inda o meu irm􏿽.
Pregaste-me na cruz; 􏿽o mesmo, fica em
paz. Eu costumo esquecer o mal que
alguem me faz. Eu tenho at􏿽prazer, bem
v􏿽, no sacrificio. N􏿽 te cause remorso o
meu atroz suplicio, Estes golpes crueis,
estas horriveis dores. As chagas para mim
s􏿽 outras tantas fl􏿽es!􏿽
Judas fitou ao longe os cerros do calvario,
E erguendo-se viril, soberbo,
extraordinario, Exclamou:
--􏿽N􏿽 acceito a tua compaix􏿽. A Justi􏿽
dos bons consiste no perd􏿽. Un justo n􏿽
perd􏿽. A justi􏿽 􏿽implacavel. A minha ac􏿽o
􏿽infame, hedionda, miseravel; Preguei-te
nessa cruz, vendi-te aos Farizeus. Pois
bem, sendo eu um monstro e sendo tu um
Deus, Vais v􏿽 como esse monstro, 􏿽pobre
Christo nu, 􏿽maior do que Deus, mais justo
do que tu: 􏿽tua caridade humanitaria e
doce, Eu prefiro o dever terrivel!􏿽
E enforcou-se.
O PAP􏿽
As crean􏿽s t􏿽 medo 􏿽noite, 􏿽 horas mortas
Do pap􏿽 que as espera, hediondo, atraz
das portas, Para as levar no bolso ou no
capuz d'um frade. N􏿽 te rias da infancia,
􏿽velha humanidade, Que tu tambem tens
medo ao barbaro pap􏿽, Que ruge pela
boca enorme do trov􏿽, Que aben􏿽a os
punhaes sangrentos dos tyranos, Um pap􏿽
que n􏿽 faz a barba ha seis mil annos, E que
mora, segundo os bonzos t􏿽 escripto,
L􏿽em cima, de traz da porta do Infinito.
PARASITAS
No meio d'uma feira, uns poucos de
palha􏿽s Andavam a mostrar em cima d'um
jumento Um aborto infeliz, sem m􏿽s, sem
p􏿽, sem bra􏿽s, Aborto que lhes dava um
grande rendimento.
Os magros histri􏿽s, hypocritas, devassos,
Exploravam assim a flor do sentimento, E o
monstro arregalava os grandes olhos ba􏿽s,
Uns olhos sem calor e sem intendimento.
E toda a gente deu esmola aos taes
ciganos; Deram esmola at􏿽mendigos quasi
n􏿽s. E eu, ao ver este quadro, apostolos
romanos,
Eu lembrei-me de v􏿽, funambulos da Cruz.
Que andaes pelo universo ha mil e tantos
annos Exhibindo, explorando o corpo de
Jesus.
RESPOSTA AO SILLABUS
Fanaticos, ouvi as coisas que eu vos digo:
Dentro d'essa pris􏿽 cruel do dogma antigo
A consciencia n􏿽 p􏿽e estar paralisada,
Como n'um velho catre uma velha
entrevada. Tudo se modifica e tudo se
renova: Da escura podrid􏿽 nojenta de uma
cova Sae uma fl􏿽 vermelha a rir
alegremente. A ideia tambem muda a pel'
como a serpente. O que era hontem gr􏿽
􏿽hoje a seara immensa. A Verdade sahiu
d'esse casulo--a Cren􏿽, Assim como sahiu
do velho o mundo novo. Recolher outra
vez a aguia no seu ovo 􏿽impossivel;
quebrou o involucro ao nascer. Como
􏿽que p􏿽es tu 􏿽Egreja, pretender,
Cerrando na tua m􏿽 um box enorme--o
inferno, Levar aos encontr􏿽s o espirito
moderno, Leval-o para traz, para o
passado escuro, Como um bandido leva
um homem contra um muro?! A trajectoria
immensa e fulva da verdade N􏿽 se p􏿽e
suster com a facilidade Com que
Jusu􏿽susteve o sol no firmamento. Atirar a
justi􏿽, a ideia, o pensamento 􏿽 fogueiras
da f􏿽 􏿽bonzos, 􏿽impossivel: Reduzirdes a
cinza o que? O incombustivel! Loucos! ide
dizer ao velho Torquemada Que queime
se 􏿽capaz n'um forno uma alvorada!
.................................... Sacristas, Ajuntae,
reuni os balandraus papistas, As fardas
sepulcraes do exercito da f􏿽 A capa de
Tartufo, a loba de Claret, A cogula do
monge, enfim, tudo que seja C􏿽 da nolte;
arrancae o velho crepe 􏿽egreja, Dos
caix􏿽s descosei os panos funerarios,
Tisnae co'a vossa lingua as alvas e os
sudarios, E se inda precisaes mais
sombras, mais farrapos, Pedi ao corvo a
aza, o ventre immundo aos sapos, Fabricae
d'isto tudo uma cortina immensa, E
tapando com ella o sol da nossa cren􏿽,
Nem mesmo assim fareis o eclipse da
aurora! A consciencia n􏿽 􏿽a besta d'uma
nora. Lembrai-vos que o Progresso 􏿽um
carro sem trav􏿽, E que apagar em n􏿽 o
facho da raz􏿽 􏿽o mesmo que apagar o sol
quando flameja Com um apagador de lata
d'uma egreja.
Bonzos, podeis dizer 􏿽humanidade--P􏿽a!--
Co'a foice excomunh􏿽 podeis ceifar a
ceara Da heresia; podeis, segundo as
ordenan􏿽s, Metter pedras de sal na boca
das crean􏿽s, Fazer do Deus do amor o
Deus barbaridade, Chamar 􏿽estupidez
irm􏿽da caridade E jesuita a Jesus e Christo
a Carlos sete; V􏿽 podeis discutir junto da
campa o frete, Recoveiros de Deus, o frete
que 􏿽preciso Para irdes levar l􏿽cima ao
paraiso A alma d'um defunto; 􏿽bonzos, v􏿽
podeis Ir pedir emprestado um exercito
aos reis E defender com elle o papa, o
vaticano, Do cerco que lhe faz o
pensamento humano, Pondo adiante d'um
dogma a boca d'um canh􏿽; Podeis
encarcerar dentro da inquisi􏿽o Galileu; v􏿽
podeis, an􏿽s, contra os ciclopes Roncar
latim, zurrar serm􏿽s, brandir hyssopes,
Que n􏿽 conseguireis que a Liberdade vista
A batina pingada e rota d'um sacrista, Que
o direito se ordene, e que a Justi􏿽 queira Ir
a Roma tomar, contricta, o v􏿽 de freira!
O BAPTISMO
Exeat de vobis spiritus malignas.
RITUAL.
Baptisaes: arrancaes d'um anjo um satanaz.
Desinfectaes Ariel banhando-o em
aguarraz De egreja e no latim que um
malandro expectora, Dizeis 􏿽noite:--limpa
a tunica da aurora, E ao rouxinol
dizeis:--pede a ben􏿽o da c'ruja. Daes os
lirios em fl􏿽 ao rol da roupa suja,
Representaes a far􏿽 estupida e sombria
D'um conego a lavar um astro n'uma pia,
Finalmente extrahis da innocencia o
pecado, Que 􏿽o mesmo que extrahir d'uma
rosa um cevado, E tudo isto porque?
Porque na biblia um mono Devora uma
ma􏿽 sem licen􏿽 do dono!
EURICO
Cod. civil art. 1057 e 4031
Eurico, Eurico, 􏿽pallida figura, Lastimoso,
romantico levita, Que nos serros do Calpe
em noite escura Ergues as m􏿽s 􏿽abobada
infinita;
Rasga a pagina santa da Escriptura; O
espirito de luz que em n􏿽 habita J􏿽n􏿽
consente essa ideal loucura Que faz do
amor uma paix􏿽 maldita.
Deixa a soid􏿽 dos montes escalvados; N􏿽
soltes mais os threnos inflamados, Nem
tenhas medo 􏿽 garras do demonio.
Beija a Hermengarda, a timida donzella. E
vai de bra􏿽 dado tu e ella Contrahir
civilmente o matrimonio.
A ARVORE DO MAL
Por debaixo do azul sereno, entre a
fragancia Dos mirtos, dos rosaes,
Viviam n'uma doce e n'uma eterna infancia
Nossos primeiros paes.
Seus corpos juvenis, mais alvos do que a
lua, Mais puros que os diamantes,
Conservavam ainda a virgindade nua
Das coisas ignorantes.
Poz Deus n'esse jardim com sua m􏿽 astuta
Ao lado da innocencia A Arvore do Mal
que produzia a fructa Venenosa da
sciencia.
E, apezar de conter venenos homicidas
E o germen do pecado, Era Deus quem
comia 􏿽noite, 􏿽 escondidas, Esse
fructo vedado.
Por isso Jehovah tinha sciencia infinda,
Tinha um poder secreto, E Ad􏿽 que n􏿽
provara os fructos era ainda Um anjo
analfabeto.
Eva colheu um dia o bello fructo impuro,
O fructo da Ras􏿽. N'esse instante sublime
Eva tinha o Futuro Na palma da sua
m􏿽!
O homem, abandonado a submiss􏿽
covarde, Viu o fructo e comeu. Esse
fructo 􏿽a luz que a Jupiter mais tarde
Roubar􏿽Prometheu.
E ao v􏿽 igual a si a estatua que creara,
O homem reprobo e nu, Jehovah
exclamou: 􏿽Maldita seja a seara cuja
semente 􏿽 tu!􏿽
Veio depois a Egreja e repetiu aos crentes
De toda a humanidade: 􏿽Maldito seja
sempre o que enterrar os dentes Nos
fructos da Verdade!􏿽
A Egreja permittia esse vedado pomo
S􏿽ente aos sacerdotes. Da arvore do mal
fugia o mundo, como Os lobos dos
archotes.
Se o sabio que buscava o oiro nas retortas
Ia como um ladr􏿽 Roubar timidamente,
􏿽noite, 􏿽 horas mortas Algum fructo do
ch􏿽,
Tiravam-lhe da boca esse fructo damninho
D'uma maneira suave: Atando-lhe
􏿽garganta uma corda de linho
Suspensa d'uma trave.
Um dia um visionario, alma vertiginosa,
Espirito immortal, Foi deitar-se, que
horror! 􏿽sombra temerosa Da Arvore
do Mal.
A Egreja ao v􏿽 aquella intrepida heresia
Lan􏿽-lhe excomunh􏿽s; Tomba por terra
um fructo... e Newton descobria A lei
das atrac􏿽es!
Sacudi, sacudi, a arvore maldita, Que
os astros tombar􏿽, Como se sacudisse a
abobada infinita Deus com a propria
m􏿽!
E quando o mundo inteiro emfim houver
comido At􏿽􏿽saciedade O fructo que
lhe estava ha tanto prohibido, O fructo
da Verdade,
Homens, dizei ent􏿽 a Jehovah:--􏿽Tirano,
Vai-te embora d'aqui! Construimos de
novo o paraiso humano; Fizemol-o
sem ti.
􏿽Expulsaste do Olimpo a humanidade
outr'ora, 􏿽despota feroz; Pois bem, o
Olimpo 􏿽nosso, e Jehovah, agora
Expulsamos-te n􏿽!
A SEMANA SANTA.
I
N􏿽 podendo dormir no horror da
sepultura, Na podrid􏿽 escura Da
terra immunda e fria, Voltaire
despeda􏿽ndo o feretro chumbado, E
cingindo o len􏿽l ao corpo esverdeado
Resuscitou um dia.
Pairava-lhe no labio o riso fulminante Com
que outr'ora gravou nas cren􏿽s virginaes,
Como n'um rico espelho a aresta d'um
diamante, Tamanhas abjec􏿽es, sarcasmos
t􏿽 brutaes. Mas era ao mesmo tempo o riso
heroico e bom Que os tiranos prostrava
em misero desmaio, Riso a que succedeu o
verbo de Danton, Como a um trov􏿽
succede o lampejar d'um raio. Dormira
febrilmente um longo somno inquieto Em
quanto andava o mundo a executar-lhe os
planos, E vinha ver emfim, diabolico
architeto, O estado da sua obra ao cabo de
cem annos, 􏿽satiro divino, 􏿽monstro da
ironia, Genio que Deus conduz e Satanaz
impelle, Que esmagas hoje o _infame_, e
escreves no outro dia Com a tinta do
enxurro os versos da Pucelle; Tu 􏿽 feito de
luz e feito de baixesas, Feito de
heroicidade e de protervias m􏿽;
Corromperam-te a alma os bra􏿽s das
duquezas E encarguilhou-te a face o rir de
Satanaz. Rasgas ao mundo novo a estrada
do futuro Cantando ao mesmo tempo o
sordido deboche: 􏿽 como um Juvenal
dentro d'um Epicuro, 􏿽arlequim-titan,
􏿽semi-deus-gavroche. N'esse labio
mordente esso sorriso eterno Faz frio
como a ponta aguda d'uma espada; O teu
genio, Voltaire, 􏿽como o sol do inverno,
D􏿽muitissima luz, mas n􏿽 aquece nada. Em
v􏿽 por sobre a paz dos campos desolados
Elle entorna do azul seus vivos
esplendores; N􏿽 cantam rouxinoes nas
sebes dos vallados, N􏿽 faz nascer o trigo e
germinar as flores. 􏿽que nunca soubeste o
que 􏿽a d􏿽 profunda Que estalla fibra a
fibra os grandes cora􏿽es; 􏿽que nunca
choraste, 􏿽Prometheu corcunda, Como
Dante chorou, como chorou Cam􏿽s
Voltaire, 􏿽rachador de velhos
preconceitos, Aos golpes de teu riso, a
golpes de machado Cairam sobre a terra
athleticos, desfeitos Na floresta da noite os
cedros do passado.
Mataste a tradi􏿽o, o dogma, o privilegio,
Assobiaste a rir a f􏿽de nossos paes, E
andaste pelo azul, hediondo sacrilegio! A
correr 􏿽pedrada os deuses immortaes.
Empunhando o alvi􏿽 terrivel da verdade
Tu minaste, Voltaire, infatigavelmente O
alicerce de bronze 􏿽velha sociedade. Do
teu riso cruel a onda dissolvente Foi como
os vagalh􏿽s, arietes do mar, Que cavam
sob a rocha um t􏿽 profundo abismo Que a
rocha fica quasi assente sobre o ar. Tu
minaste, Voltaire, a rocha despotismo. E
depois de ter feito a excava􏿽o noturna,
Como fazem no monte as feras
sanguinarias, Encheste at􏿽􏿽bocca essa
medonha furna Com barris de petroleo e
bombas incendiarias E em quanto o niveo
p􏿽soberbo de Antonieta Da Fran􏿽
estrangulava a suplicante voz, Tu lan􏿽vas
de longe a tragica luneta, Velho Fauno
cruel, rindo com riso atroz. At􏿽que um dia
emfim exausto de cansa􏿽, Sentindo j􏿽sem
for􏿽 as garras de condor, Tu chegaste,
Arouet, sem te tremer o bra􏿽, Ao rastilho
da mina o fogo abrasador. Cobriu-se ent􏿽
o azul d'uma tormenta escura, Echoou
lugubremente o estrondo de trov􏿽, Viste
arder o rastilho at􏿽uma certa altura, E
foste-te esconder, a rir, na sepultura Mal
se ia aproximando a hora da explos􏿽.
Quando resuscitou Voltaire ficou atonito
Vendo os nossos chapeus e as nossas cal􏿽s
pretas, Mas como desejava andar no
mundo incognito, E n􏿽 l􏿽 o seu nome
impresso nas gazetas, Oh, a necessidade a
quanto nos obriga! Voltaire o diplomata, o
cortez􏿽 taful Largou a juba d'oiro, a
cabelleira antiga E foi vestir-se 􏿽moda aos
armasens do Pool. Na sexta feira santa os
templos percorria Voltaire para observar
os crentes verdadeiros No dia da paix􏿽, no
luctuoso dia Em que se faz de Christo o
deus dos confeiteiros. Arouet, ao v􏿽
aquella estupida far􏿽da, Foi acordar Jesus
na sua campa ignorada E disse-lhe:
II
--􏿽Anda v􏿽 􏿽Christo estes bandidos.
Que rostos t􏿽 floridos, Que
bellas digest􏿽s! 􏿽pallido Jesus, 􏿽scismador
antigo, Levanta-te da campa e vem d'ahi
commigo A v􏿽 estes ladr􏿽s.
N􏿽 vamos passeiar juntos, de bra􏿽 dado,
Mas vestir􏿽 primeiro um frak bem talhado
De fino pano inglez, E hasde p􏿽 na
cabe􏿽 este chapeu redondo, Para ficar
gentil, para ficar hediondo Como
qualquer burguez.
Tu odeias de certo estas casacas pretas,
Mas n􏿽 quero, Jesus, que tu me
compromettas Com esse balandrau
muitissimo rat􏿽. Se eu fosse ao boulevard
comtigo e alguem me visse, Ninguem oh,
fl􏿽 do tom! ninguem, oh canalhice!
Me apertaria a m􏿽.
O talhe d'um colete e os pontos d'uma
luva, A menor frioleira, um simples guarda
chuva, Substituiram hoje as regras de
Lavater: Passando eu por accaso enodoado
e roto, Diriam: 􏿽Que chapeu! que pulha!
que maroto! Aquelle homem n􏿽 tem nem
sombras de caracter!􏿽
Anda, veste a farpella. Agora, sim senhor!
Muito grotesco 􏿽, meu pobre Redemptor!
Vais a comprometter-me, 􏿽alma do Diabo!
Que figura infeliz, inteiramente chata!...
Pelo menos corrige o la􏿽 da gravata E p􏿽
na _boutoniere_ este jasmim do Cabo.
Necessitas de ter maneiras delicadas E a
arte de dizer uns pequeninos nadas
Com chic e distinc􏿽o. Ser Deus 􏿽muito
bom; Mas 􏿽preciso ser um deus da fina
roda, Um deus do nosso tempo, um deus
da ultima moda, Um deus _petit-crev􏿽, um
deus 􏿽_Benoiton_.
Se amanh􏿽por acaso alguem, medita n'isto,
Te fosse apresentar--Sua Ex. o Christo--
Nos devotos sal􏿽s do bairro S􏿽-Germano,
Oh escandalo! oh far􏿽! oh padre
omnipotente! As duquezas, sorrindo
aristocratamente, Achavam-te decerto um
Deus provinciano.
Saiamos para a rua. A gente anda de lucto,
Porque consta que outr'ora un visionario,
un bruto, Se deixara morrer pregado n'um
madeiro. E hoje em memoria d'isto os paes
compram 􏿽 filhas, Tres caixas de
pastilhas Na loja d'um doceiro.
Quanta mulher formosa ahi nesses balc􏿽s!
Que lindas tenta􏿽es, Meu palido
judeu! Deixa por um instante as regi􏿽s
serenas; Namora estas pequenas,
Que ellas h􏿽 de gostar do teu perfil
hebreu.
Arranja um casamento e aprende a ter
juizo. A noiva pouco importa; o dote 􏿽que
preciso Discutil-o. Olha l􏿽 os paes que
sejam velhos!... Que v􏿽para o diabo o
reino da Utupia! E h􏿽de-te nomear socio
da academia E, quem sabe! talvez bar􏿽
dos Evangelhos.
Penetremos na egreja a v􏿽 esta far􏿽da. Uns
entram para v􏿽 a casa illuminada, Os
dandys 􏿽por _chic_, os velhos por
_dec􏿽o_; Estes 􏿽para ouvir tocar umas
quadrilhas, E os outros, que sei eu!... para
vender as filhas, Para matar o tempo ou
arranjar namoro.
L􏿽vai o pregador dizer a seremonata
Tussiu cuspiu, sorriu, bebeu a sua orchata
E come􏿽 a fallar. Tem uns bonitos dentes.
E com gesto facundo e voz amaneirada
Receita una enfiada De tropos
excellentes.
Acabou se. O auditorio Gostou
do farelorio Como gost􏿽os n􏿽.
Soltam-se exclama􏿽es por entre algum
rumor: --_Muito bem! muito bem!_--_􏿽um
grande pregador!_-- --_Foi um rico
serm􏿽!_--_E que bonita voz!_
E 􏿽esta a tua casa, 􏿽meu pobre Jesus!
N􏿽 te bastou a cruz; Era preciso o
altar, Que destino cruel, que tragica ironia!
Nasces na estrebaria, Vives no
lupanar!
Desfila pela rua immensa multid􏿽.
Saiu a prociss􏿽; Paremos um instante.
􏿽curioso isto. Que far􏿽s imbecis, que
velhas pompas mudas! L􏿽vae pegando ao
palio o teu amigo Judas, Que est􏿽 como tu
v􏿽, commendador de Christo!
Os anjos theatraes caminham lentamente
Com azas de gal􏿽 feitas expressamente
Nas lojas de Pariz. Pobres anjos do c􏿽!
querem martirisal-os: V􏿽 cheios de suor e
apertam-lhe os calos As botas de
verniz.
Agora passas tu n'um palanquim bordado.
Coidado! Muito trabalho tem quem
faz religi􏿽s! Repara como vais, olha que
bella tunica: 􏿽pavorosa, 􏿽unica!
Off'receu-t'a um burguez n'um dia de
elei􏿽es.
E atraz do velho andor e atraz das velhas
opas V􏿽 desfilando agora os esquadr􏿽s
das tropas Com gesto marcial. Tu
que amavas os bons, os simples e as
crean􏿽s, Seguido como os reis d'um
matagal de lan􏿽s, Meu pobre
general!
Terminou a func􏿽o. 􏿽negro o firmamento.
Ai que aborrecimento! 􏿽meu
Jesus, que tedio! Para poder dormir, para
poder ceiar, Que hade a gente fazer?
vamos ao lupanar, N􏿽 ha outro
remedio.
Alli tens, meu amigo, os conegos
vermelhos: Que rostos joviaes, brunidos
como espelhos, Que riso debochado e
gesto vinolento! E 􏿽noite, a esta hora, uns
padres sem batinas Do certo n􏿽 vir􏿽
pregar 􏿽 concubinas O 6.^o
mandamento!
Os teus guardas fieis depois da prociss􏿽,
J􏿽roucos de cantar um velho cantoch􏿽,
Deixaram-te no templo abandonado e s􏿽
Uns vieram beijar as carnes prostitu􏿽as, E
os outros foram l􏿽 no quarto, 􏿽 escondidas,
Romances de Bollot.
E como a noite 􏿽linda! a branca lua passa,
Ostentando na fronte a pallidez devassa
D'uma infeliz mulher. Quando tudo
fermenta e tudo anda de rastros J􏿽n􏿽 deve
admirar que a siphilis chegue aos astros E
precisem tambem xarope de Gibert!
Meu Pae, vamos ceiar. 􏿽quasi madrugada;
􏿽a hora do tom, a hora consagrada Para os
ricos festins 􏿽viva luz do gaz. 􏿽a hora da
morte, a hora do atahude, E a mesma em
que repoisa a candida virtude Nos
bra􏿽s de Faublas.
Anda n􏿽 tenhas medo, entra no
restaurante. A sala est􏿽repleta. A purpura
brilhante Dos desejos inflama os sonhos
tentadores. O champanhe sacode os
craneos embriagados, E os crimes
sensuaes e os vicios delicados Rompem
n'um turbilh􏿽 de venenosas fl􏿽es.
O punch, illuminando as faces
cadavericas, Faz-nos imaginar as
saturnaes chimericas Que 􏿽noite deve
haver na _morgue_ de Paris, Aonde as
cortez􏿽, mais roxas que as violetas, Ao luar
cantar􏿽 as verdes can􏿽netas Das
podrid􏿽s gentis.
Volteiam pelo ar os ditos picarescos,
Elasticos, febris, doidos, funambulescos,
Como gnomos de luz vestidos de histri􏿽s,
Dan􏿽ndo, tilintando os guisos argentinos,
Fazendo 􏿽luz do gaz tregeitos libertinos
Com o riso cruel das hallucina􏿽es.
Ceiemos. Manda vir as coisas que
preferes; E que nos v􏿽 buscar duas ou tres
mulheres, Que as ha perto d'aqui; O
mais, pede por boca, o meu divino mestre;
Mas escuta, olha l􏿽 n􏿽 pe􏿽s mel silvestre,
Porque j􏿽se n􏿽 usa e riem se de ti.
E agora 􏿽destampar a rubra fantasia!
Bebe, pragueja, ri, inventa, calumnia,
Anda! mostra que tens espirito, ladr􏿽! N􏿽
quero v􏿽 chorar os olhos teus contrictos;
S􏿽canalha com gra􏿽, infame com bons
ditos, Vamos, semsabor􏿽!
Conta-nos em voz alta historias bem
galantes, Segredos irritantes,
Vergonhas sensuaes, Adulterios da moda,
escandalos, miserias, Tudo isto, j􏿽se v􏿽
com optimas pilherias, Bastante
originaes.
Tu precisas perder esse teu ar de
adventicio E um certo horror ao
vicio, D'um pedantismo ignaro;
Formosura sem vicio 􏿽coisa que n􏿽 tenta;
O vicio, meu amigo, 􏿽bom como a
pimenta, E o defeito que tem 􏿽ser um
pouco caro.
Conversemos, alegra a tua fronte augusta.
S􏿽espirituoso, inventa, o que te custa! Uma
infamia qualquer muitissimo engenhosa...
Tens um amigo? bem, vamos calumnial-o;
Tens amantes? melhor, eu dou-te o meu
cavallo E d􏿽-me a mais formosa.
Parece que o rubor te vai subindo 􏿽
faces... 􏿽Filho, n􏿽 me masses!
􏿽Filho, tem piedade! Deixa-te de serm􏿽s;
no fim de contas eu Sou muito bom
christ􏿽... um poucochinho atheu, Como um
christ􏿽 qualquer da fina sociedade.
Saiamos; rompe a aurora. A burguezia
dorme, Como a giboia enorme Que
resona, depois de devorar um toiro;
􏿽giboia feliz, 􏿽burguezia, 􏿽pan􏿽,
Dorme com seguran􏿽 Que a forca est􏿽de
guarda aos teus bezerros d'oiro.
E chama-se Progresso, 􏿽Deus, esta far􏿽da!
Isto 􏿽o cinismo alvar e em p􏿽lo, 􏿽desfilada,
􏿽a prostitui􏿽o ignobil da mulher, S􏿽
desejos brutaes, 􏿽carne em plena orgia,
Emfim a saturnal da podre burguezia, Que
resa como o papa e ri como Voltaire.
Morrendo o velho Deus, o velho Deus
tirano, Este mundo burguez,
catholico-romano Encontrou-se sem f􏿽 sem
dogma, sem moral; A justi􏿽 era elle o
Padre-omnipotente; Esse Padre morreu;
ficou nos simplesmente Um unico
evangelho--o codigo penal.
A consciencia humana 􏿽um monte de
destro􏿽s. Foram-se as ora􏿽es, foram-se os
padres-nossos, Tombou a f􏿽 tombou o c􏿽,
tombou o altar; E o velho Deus-castigo e o
velho Deus-receio 􏿽simplesmente
um freio Para conter a raiva 􏿽besta
popular.
A crassa burguezia, essa recua fradesca,
Opipara, animal, silenica, grotesca,
Namora a Deuza-carne e adora o
Deus-milh􏿽; E as almas, fermentando
assim n'esta impureza, Resvalam sensuaes
do leito para a meza. Da meza para o
ch􏿽.
Vendem-se a peso d'oiro as languidas
donzellas, Mais torpes que as
cadellas, Que ao menos d􏿽 de gra􏿽 o
libertino amor, E o Dever, a Saude, o Justo,
o Verdadeiro, Esses ricos metaes
fundem-se no brazeiro D'um sensualismo
espresso, atroz, devorador.
A agiotagem, a bolsa, a cota􏿽o dos fundos,
􏿽o principio rei dominador dos mundos,
􏿽um sangue vital, forte como o cognac.
Engordae, engordae 􏿽bravos _homens
serios_, Que servis para dar esterco aos
cemiterios E musica a Offenbak.
A vergonha morreu, a dignidade foi-se. _O
mundo official_ 􏿽um vergonhoso alcoice, E
a plebe tripudiando em horridas orgias
Lan􏿽 sobre o Direito um pustulento
escarro, E acende, cambaleando, a ponta
do cigarro Na fogueira que abrasa o
Louvre e as Tulherias.
A familha 􏿽um bordel. Os leitos sensuaes
S􏿽 verdadeiramente esgotos seminaes,
Eroticas latrinas, Onde entre o tumultuar
d'um debochado goso Se fabrica de noite
o sangue escrofuloso Das ra􏿽s
libertinas.
Calemo-nos. Eu oi􏿽 as ferraduras de
Argus. 􏿽a Ordem e a Lei; correm a trotes
largos, V􏿽 n'esta direc􏿽o, esconde-te,
Jesus! Metamo-nos aqui n'um beco, anda
ligeiro! Que, se sabem quem 􏿽, meu velho
petroleiro, Mandam-te pendurar segunda
vez na cruz.
E agora, Filho, adeus. Eu vou dormir um
pouco, E tu, meu pobre louco,
Descan􏿽 inda que seja um breve quarto
d'hora; Tingem-se de vermelho as bandas
do Oriente, 􏿽hoje a Alleluia, e
necessariamente Tens de resuscitar logo
ao romper d'aurora.
Eu mais feliz que tu, simples mortal que
sou, Eu, meu amigo, vou Dormir
at􏿽que chegue a hora do jantar. Adeus, e
resuscita apenas surja o dia; Se queres
vem dormir 􏿽minha hospedaria, Que
eu mando-te acordar.􏿽
E Arouet partiu, soltando uma cruel risada
E Jesus ficou s􏿽na noite desolada,
N'aquella colossal Babilonia impudente,
Entre quatro milh􏿽s do almas--quatro
milh􏿽s De tigres, do reptis, de abutres e
de le􏿽s Agachados na sombra
amea􏿽doramente!...
Quem a visse do alto essa Londres deserta
Com a fosforencia esmorecida, incerta Da
luz do gaz a arder sob um c􏿽 tumular,
Julgaria estar vendo um grande monstro
escuro, Como que um Leviatham putrido
n'um monturo Immenso a fermentar.
A noite era sinistra. Os ventos a galope
Resfolegavam como as forjas d'um ciclope
Com uivos de alienado e rugidos de feras.
E o mar bramia ao longe athletico,
espumante Qual marmita profunda a
ferver trovejante Sobre cem mil
crateras.
E Christo foi andando errante, vagabundo
Atravez dessa vasta imperatriz do mundo,
Opulenta Gomorra hidropica do vicio, Que
Deus n􏿽 enxofrou talvez, como costuma,
Porque al􏿽 de estar caro o enxofre, Deus
em suma J􏿽n􏿽 pode arruinar-se em fogos
de artificio.
E elle ia vendo os mil palacios portentosos
Onde a besta feliz dormia, ebria de gosos,
Um inefavel somno. Em quanto que a
miseria anonima, esfaimada 􏿽 tres da
madrugada Disputava o jantar no enxurro
aos c􏿽s sem dono.
As altas cathedraes, aonde a borguezia Vai
arrotar um pouco 􏿽missa do meio dia;
Tinham como que o ar d'um theatro
fechado O aspecto mercantil d'um
armazem colosso, Em que Deus ao balc􏿽
vende os dogmas por grosso E o c􏿽
por atacado.
Os bancos, Pantagrueis do milh􏿽,
monumentos De marmore e granito e
bronze, somnolentos Molochs, cuja pan􏿽
obesa 􏿽um matadouro, Na virtuosa paz de
monstros em descan􏿽 Digeriam de
manso Nos seus ventres de ferro um
Himalaia d'oiro.
Nos mundos hospitaes, onde emfim a
desgra􏿽 Tem a consola􏿽o do agonisar de
gra􏿽, Santos, monstros,
heroes,--Tropmans, Valgeans, Phrin􏿽--
Anciavam no estert􏿽 do tranze derradeiro,
--Lixo que um bonzo vae entregar a um
coveiro Para o calcar aos p􏿽.
E era aquella immundicie humana a
humanidade! Tinha valido bem a pena na
verdade Pregado n'uma cruz morrer como
um ladr􏿽, Para ao cabo de dois mil annos
vir achar Pilatos sob o throno e Caifaz
sobre o altar De diadema na fronte e
baculo na m􏿽!
Arrazou-se de pranto o olhar do Nazareno,
Aquelle olhar profundo, aquelle olhar
sereno Que outr'ora deu alivio a tantos
cora􏿽es, E a linha virginal de seu perfil
suave Turbou-se, apresentando o aspecto
mudo e grave Daz nobres affli􏿽es.
E marmoreo, espectral, com a fronte
sombria Banhada no suor sangrento da
agonia Foi deitar-se outra vez na leiva
tumular, Athleta que expirou tranzido de
mil d􏿽es E quer dormir, dormir entre as
hervas e as flores Onde escorre piedosa a
branca luz do luar.
E quando a christandade 􏿽volta do meio
dia Correu ao templo a ver o entremez da
Alleluia, Em logar d'um Jesus banal de
ciclorama Subindo ao firmamento,
D'olhos azues n'um c􏿽 d'anil, tunica ao
vento, Sobre nuvens de gloria, de algod􏿽
em rama,
Viu-se na tela um Christo em furia, um
visionario, Truculento, febril, colerico,
incendiario, Como que um salteador
fugido das gal􏿽, Na b􏿽a uma blasfemia e
no olhar um archote, Expulsando da
egreja os christ􏿽s a chicote E expulsando
do altar o papa a pontap􏿽!
A BARCA DE S. PEDRO
Na barca de S. Pedro ex-santo, hoje
banqueiro, S􏿽 tantos os caix􏿽s com bulas
da cruzada, E tanto o oiro em barra, as
joias, o dinheiro, O navio 􏿽t􏿽 velho e a
carga 􏿽t􏿽 pesada;
Os anneis, os setins, as purpuras, as
rendas, As mitras d'oiro fino, os bentos, as
imagens, As pratas, os cristaes, os vinhos,
as of'rendas, Os meninos do c􏿽o, os
famulos, os pagens;
O macisso tropel de conegos vermelhos,
De sacristas, bedeis, archeiros,
missionarios, E o damasco, o velludo, os
bronzes, os espelhos, o silabus, a curia, as
forcas, os rosarios;
As pipas e os toneis com aguas milagrosas,
Que ainda causam hoje o mais profundo
assombro; Dos velhos cardeaes as cortez􏿽
formosas, E o cura Santa Cruz de
bacamarte ao hombro;
Esta orgia pag􏿽 esta riqueza immensa
Atulham de tal forma a barca
ultramontana, 􏿽t􏿽 desenfreado o vento da
descren􏿽, E o mar 􏿽t􏿽 revolto, a carga 􏿽t􏿽
mundana;
Que a barca do senhor, outr'ora dirigida
Por doze galileus descal􏿽s, quasi nus, Ella
que atravessava o grande mar da vida
Tendo s􏿽por farol os olhos de Jesus;
A barca que atravez do horror da
tempestade, Arvorando no mastro o
pavilh􏿽 da Esp'ran􏿽, Levava os cora􏿽es de
toda a cristandade Ao grande porto ideal
da Bemaventuran􏿽;
Hoje ao peso cruel d'este deboche
hediondo Essa barca da Egreja, esse
colosso antigo Sossobrar􏿽 o Deus, com
pavoroso estrondo, Indo dormir ao p􏿽dos
_gale􏿽s de Vigo_.
LADAINHA
S. Ignacio
Bemdicto quem nos d􏿽o p􏿽 de cada dia.
Coro de Santos
Bemdicta a Estupidez, bemdicta a
Hipocrisia.
S. Ignacio
Bemdicta seja a forca erguida sobre o
mundo.
Coro de Santos
Bemdicto Carlos sete e D. Miguel
segundo.
S. Ignacio
Bemdicto seja o tigre e o lobo carniceiro.
Coro de Santos
Bemdicto seja el-rei D. Jo􏿽 terceiro.
S. Ignacio
Bemdictas sejaes v􏿽, ovelhas de Maria.
Coro de Santos
E mais a vossa l􏿽 e mais quem n'a tosquia.
S. Ignacio
Bemdictos os chacaes, bemdictas as
toupeiras.
Coro de Santos
E a lingua da verdade e as linguas das
fogueiras.
S. Ignacio
Bemdictos os febris venenos orientaes.
Coro de Santos
E o Santo padre Borgia e muitos Santos
mais...
S. Ignacio
Bemdicta a nossa F􏿽 bemdicta a nossa
Egreja.
Coro de Santos
Bemdicto o nosso ventre! Amen. Bemdicto
seja!
COMO SE FAZ UM MONSTRO
I
Elle era n'esse tempo uma crean􏿽 loira
Vivendo na abundancia agreste da lavoira,
Ao vento, a chuva, ao sol, pastoreando os
gados, Deitando-se ao luar nas pedras dos
eirados, Atravessando 􏿽noite os solitarios
montes, Dormindo a boa s􏿽ta ao p􏿽das
claras fontes, Trepando aos pinheiraes, 􏿽
fragas, aos barrancos, No rijo e negro p􏿽
cravando os dentes brancos, Radioso
como a aurora e bom como a alegria.
Quando no azul do c􏿽 cantava a cotovia,
Aos primeiros clar􏿽s vibrantes da alvorada
Transportava ao casebre o leite da
manada, Acordando, a assobiar e a rir
pelos caminhos, Os lebreus nos portaes e
as aves nos seus ninhos. E 􏿽tarde quando o
sol, extraordinario Rubens, Na
fantasmagoria esplendida das nuvens,
Colorista febril, lan􏿽, desfaz, derrama O
topasio, o rubi, a prata, o oiro, a chama,
Elle ia ent􏿽 sosinho, alegre intemerato,
Conduzindo a beber ao tremulo regato, A
golpes de verdasca e gritos estridentes,
N'um ruidoso tropel os grandes bois
pacientes. O seu olhar azul de limpidez
virtuosa, Onde brilhava a audacia heroica
e valorosa A candura infantil e a
intelligencia rara, O timbre da sua voz
imperiosa e clara, A linha do seu corpo
altivamente recta, Tudo lhe dava o ar
soberbo d'um athleta Em miniatura.
II
Um dia o pae, um bravo alde􏿽,
Chamou-o ao p􏿽de si, e disse-lhe:
􏿽Jo􏿽:
􏿽for􏿽 de trabalho e a for􏿽 de canceiras A
moirejar no monte e a levar gado 􏿽 feiras,
Consegui ajuntar ao canto do bah􏿽 Alguns
pintos. Voc􏿽 s􏿽 dois rapazes; tu, Al􏿽 de ser
mais novo, 􏿽 mais intelligente. Vou botarte
ao latim; quero fazer-te agente. Hasde-me
dar ainda um grande pr􏿽ador. Hoje padre
􏿽melhor talvez que ser doutor. Aquillo
􏿽grande vida; 􏿽vida regalada. Olha, sabes
que mais? manda ao diabo a enxada.
Aquillo 􏿽que 􏿽vidinha! aquillo 􏿽que
􏿽descan􏿽! Arrecada-se a congrua,
engrola-se o ripan􏿽, Arranja-se um serm􏿽
ahi com quatro tretas, Vai-se
escorropichando o vinho das galhetas,
E a missa seis vintens e doze os
baptisados. Depois independente e sem
nenhuns cuidados! Olha, Jo􏿽, v􏿽tu o nosso
padre cura: 􏿽 sem tirar nem p􏿽, uma
cavalgadura. Vi-o chegar aqui mais roto
que os ciganos; Pois tem feito um cas􏿽 em
meia duzia d'annos. Isto 􏿽desenganar;
padres sabem-na toda... 􏿽o serm􏿽, 􏿽a
missa, 􏿽o enterro, 􏿽a boda, 􏿽pinga da
melhor, 􏿽tudo quando ha! Quando o abade
morrer hasde vir tu p'ra c􏿽 Despacha-te o
doutor nas c􏿽tes; quando n􏿽 Votamos
contra elle, e foi-se-lhe a elei􏿽o. Mas que
􏿽isso, rapaz? Nada de choradeira! 􏿽tratar
da merenda, e quinta ou sexta-feira Toca
pr'o seminario. Eu quero ir para a cova
S􏿽depois de ti ouvir cantar a missa nova.􏿽
III
N'uma tarde d'outomno a somnolente trote
Um macho conduzia em cima do albard􏿽,
J􏿽columna da egreja, o novo sacerdote, O
muitissimo illustre e digno padre Jo􏿽. Ao
entrarem na aldeia os dois irracionaes,
Dos foguetes ao grande e jubiloso
estrepito Um velho recebeu nos bra􏿽s
paternaes, Em vez do alegre filho, um
monstro j􏿽decrepito Que acabava de vir
das jaulas clericaes. Que transfigur􏿽! que
radical mudan􏿽! Em logar da innocente,
angelica crean􏿽, Voltava um
chimpanz􏿽estupido e bisonho. Com o ar
de quem anda hallucinadamente Preso nas
espiraes diabolicas d'um sonho. Seu corpo
juvenil, robusto e florescente Vergava
para o ch􏿽 exhausto de cansa􏿽: Os dogmas
s􏿽 de bronze, e a l􏿽d'uma batina J􏿽vai
pesando mais que as armaduras d'a􏿽. A
ignorancia profunda, a estupidez suina A
luxuria d'egreja, ardente, clandestina, O
remorso, o terror, o fanatismo inquieto,
Tudo isto perpassava em turbilh􏿽 confuso
Na atonia cruel d'aquelle hediondo
aspecto, Na morna fixidez d'aquelle olhar
obtuso. Metida nas pris􏿽s escuras de
Loyola A sua alma infantil, n􏿽 tendo luz
nem ar. Foi com os rouxinoes, que dentro
da gaiola Perdem toda alegria, e morrem
sem cantar.
IV
Como ninguem ignora, os sordidos
palha􏿽s Compram, roubam 􏿽 m􏿽s as loiras
creancinhas, Torcem-lhes o pesco􏿽, as
m􏿽s, os p􏿽, os bra􏿽s, Transformam-lhes
n'um juco elastico as espinhas, E
exhibem-nas depois nos palcos das
barracas Dando saltos mortaes e
devorando facas Ante o espanto imbecil
da ingenua multid􏿽; E para lhes cobrir a
lividez plangente Costumam-lhes pintar
carnavalescamente Na face de alvaiade
um rir de vermelh􏿽. Tambem o jesuitismo
hipocrita-romano, Palha􏿽 clerical, anda
pelos caminhos A comprar, a furtar, assim
como um cigano, As crean􏿽s 􏿽 m􏿽s, os
rouxinoes aos ninhos. V􏿽 leval-as depois
ao negro seminario, 􏿽 terriveis gal􏿽, ao
sacro matadoiro, E escondem-nas da luz,
assim como o usurario Esconde tambem
d'ella os seus punhados d'oiro. Dentro da
estupidez e da supersti􏿽o, Casamata da f􏿽
guardam-lhes a raz􏿽, A analize, esse forte
e venenoso fluido, Que, andando em
liberdade, ao minimo descuido Poderia
estoirar com tragica explos􏿽. O que o
palha􏿽 faz ao corpo da crean􏿽 Fazem-lh'o
􏿽alma, at􏿽que d'ella reste emfim, Em logar
do histri􏿽 que nas barracas dan􏿽, O pobre
missionario, o inutil manequim, O histri􏿽
que nos prega a bemaventuran􏿽 A murros
do missal e a roncos de latim. As almas
infantis s􏿽 brandas como a neve, S􏿽
perolas de leite em urnas virginaes. Tudo
quanto se grava e quanto ali se escreve
Cristalisa em seguida e n􏿽 se apaga mais.
D'esta forma consegue o astucioso clero
Transformar de repente uma crean􏿽 loira
N'um passaro nocturno estupido e sincero.
􏿽abrir-lhe na cabe􏿽 a golpes de tesoira A
marca industrial do fabricante--um zero!
CALEMBOUR
􏿽Jesuitas, vois sois dum faro t􏿽 astuto,
Tendes tal corrup􏿽o e tal velhacaria, Que
􏿽incrivel at􏿽que o filho de Maria N􏿽 seja
inda velhaco e n􏿽 seja corrupto, Andando
ha tanto tempo em t􏿽 m􏿽_companhia_.
A AGUA DE LOURDES
Se ergueis uma capella 􏿽agua milagrosa,
Esse elixir divino, Ent􏿽 erguei tambem
um templo 􏿽caparosa E outro templo
ao quinino.
Se a agua faz milagre, o que eu vos n􏿽
discuto, E por isso a adorais,
Ajoelhemos ent􏿽 em face do bismuto
E d'outras drogas mais.
Fa􏿽mos da magnesia e cloroformio e
arnica As hostias do sacrario;
Transformemos o templo emfim n'uma
botica E Deus n'um boticario.
Que a vossa agua opere immensas
maravilhas Eu n􏿽 duvido nada: 􏿽o
Espirito Santo engarrafado em bilhas,
􏿽o milagre 􏿽canada.
Desde que se espalhou pelo universo o
echo Do milagre feliz, Tartufo nunca
mais encheu o seu caneco Em outro
chafariz!
ANTONELLI
Uma loba emprenhou um dia de Tartufo, E
Antonelli nasceu d'este consorcio bufo.
O seu labio despresa; o seu olhar dardeja.
Cassagnac de Deus, guarda-costas da
Egreja,
Redige as pastoraes brutaes de que se
nutre Co'um tinteiro de treva e uma penna
de abutre.
Bossuet-Ferrabraz e Falstaf-Isaias. Bebe
petroleo negro e gim nas sacristias.
N􏿽 ha pomba mais tigre ou Santo mais
demonio: Fera,--como Caim! rato,--como
Polonio!
N'aquelle olhar nocturno, inquizidor, que
assusta, Ha Nero a murmurar nas sombras
com Locusta.
O cabe􏿽o que traz na batina de lilla
Erri􏿽m-no punhaes: era d'um c􏿽 de fila.
O tigre deu-lhe o amor e o bode a
castidade, Para um dia expulsar do mundo
a Liberdade
Fez um latego atroz, que corta e que
esfarrapa, Atando uma serpente ao baculo
de um papa.
Quando observo esse monstro, essa
alim􏿽ia brava, Hercules que talhou d'um
hyssope uma clava,
Ao v􏿽-lhe os rins de bronze, e ao v􏿽-lhe a
erecta fronte, Creio estar contemplando ao
longe, no horisonte,
Entre o rubro esplendor d'uma
manh􏿽sonora, Um bufalo de treva 􏿽
cornadas na aurora!
O DINHEIRO DE S. PEDRO
De tal modo imitou o papa a singileza
Do martyr do Calvario, Que 􏿽for􏿽 de
gastar os bens com a pobreza
Tornou-se milionario.
Tu hoje p􏿽es v􏿽, 􏿽filho de Maria, O teu
vigario humilde Conversando na bolsa em
fundos da Turquia Com o Bar􏿽 Rotschild.
A cruz da redemp􏿽o, que deu ao mundo a
vida Por te aver dado a morte. Tem-a
no seu _bureau_ o padre santo erguida
Sobre uma caixa forte.
E toda essa riqueza immensa, acumulada
Por tantos financeiros, O que 􏿽a
economia, oh Deus! foi come􏿽da
S􏿽com trinta dinheiros!
AO NUNCIO MASELLA
O Padre Eterno est􏿽coberto do masellas, E
tu, (teu nome o atesta, 􏿽bonzo,) 􏿽 uma
d'ellas. Masella, escuta:
Deus, o Deus em que acredito, Essa
luz que allumina essa noite--o infinito, Esse
efluvio d'amor que em tudo anda disperso,
Espirito que, enchendo o abismo do
universo. Cabe com todo o seu vastissimo
esplendor N'um olhar de crean􏿽 ou n'um
calix de flor, Esse Deus immortal, unico,
bom, clemente, O Deus de quem tu es o
hereje e eu sou o crente, Esse Deus
􏿽Masella, 􏿽um Deus plebeu e humilde,
Cuja firma n􏿽 d􏿽nos banqueiros Rotschild
Credito algum, um Deus descal􏿽 e
proletario. Que em vez de libras guarda
em seu profundo erario Mont􏿽s d'astros,
um Deus do tal maneira vil, Que n􏿽 tem
cortez􏿽s, n􏿽 tem lista civil, Nem bispos,
nem cardiaes, nem sacrist􏿽s, nem tropa,
Nem nuncios para dar pelas c􏿽tes da
Europa Em doirados sal􏿽s e esplendidas
estufas Festins onde se serve o Evangelho
com trufas, A Biblia com champagne, e a
alma de Jesus, Bem picada, recheiando os
fais􏿽s e os perus!
Embaixador de quem? de Christo? n􏿽; do
papa. Quem 􏿽o papa?
Um Deus inventado 􏿽sucapa, Um Deus
para fazer o qual bastam apenas Quatro
coisas:--cardeaes, papel, tinteiro e pennas.
Deita-se n'uma saca uma lista qualquer.
Qualquer nome--Gregorio, ou Borgia, ou
Lacenaire, Ou Papavoine--e prompto! em
dois minutos fica Manipulado um Deus
authentico, obra rica, Tonsurado, sagrado,
infalivel, divino... Quer dizer, sahiu Deus
d'uma bolsa do quino! 􏿽um Deus por
concurso, um Deus feitos por tretas, E em
cuja divindade ideal ha favas pretas!
Apezar disso 􏿽Deus. Vai pousar-lhe no
seio O Espirito Santo, esse pombo correio
Da Providencia. 􏿽elle o redemptor e o
oraculo. A humnidade vai adiante do seu
baculo, Solu􏿽ndo, ululando, exhausta,
ensanguentada Pavoroso tropel de
sombras pela estrada Do destino fatal. O
pensamento humano 􏿽simplesmente um c􏿽
sabujo e ultramontano, Um c􏿽 vadio, um c􏿽
faminto, um c􏿽 impuro, Que o papa
recolheu de noite n'um monturo, E a quem
􏿽 vezes d􏿽com parcimonia biblica, A
pitan􏿽 d'um Breve e o osso d'uma
Enciclica. Um papa 􏿽isto:--um juiz sem lei;
omnipotente. Czar das consciencias. P􏿽e
irremessivelmente Chamuscal-as em fogo,
ou torral-as em brazas, Ou fazer-lhes
nascer das costas um par d'azas. O globo
􏿽para elle a b􏿽a d'um bilhar. Domina os
reis. O Throno 􏿽o lacaio do Altar. Seus
templos s􏿽 pris􏿽s e seus dogmas algemas.
Cingem-lhe a fronte augusta e nobre os
tres diademas, E na potente m􏿽, invencivel
harpeu, Tem as chaves do inferno... e a
gazua do c􏿽.
Masella, o theatro 􏿽velho, a receita
􏿽pequena, E ha mil annos que est􏿽a
mesma far􏿽 em scena. Abaixo a far􏿽!
Abaixo o pardieiro divino, O c􏿽, que j􏿽n􏿽
tem nem sombras de inquilino. Serafins,
cherubins, anjos, legi􏿽 eterna Dos eleitos,
tudo isso andou, poz-se na perna,
Deixando l􏿽ficar, 􏿽cafila d'ingratos! O
cadaver d'um Deus roido pelos ratos.
Abaixo o inferno, aonde os d􏿽os, meus
Irm􏿽s, N􏿽 t􏿽 fogo se quer para aquecer as
m􏿽s; Porqu􏿽l􏿽onde a curia os rebeldes
despenha Ha sobra do infieis, mas ha falta
de lenha. J􏿽nem 􏿽forno; aquillo 􏿽adega
sombria, Onde o defluxo faz a c􏿽te
􏿽pneumonia, E onde n􏿽 ha nariz precito
que ande enxuto. Cada heresiarca suja um
len􏿽 por minuto, De modo que hoje o
inferno (oxal􏿽que m'o evites, Masella!) 􏿽de
temer por causa das bronchites. Abaixo o
purgatorio! Entre chamma ex-faminta, Que
reclama com ancia algumas m􏿽s de tinta,
Gelam reprobos nus, reprobos em pelote,
Que precisam d'um fogo, 􏿽c􏿽s, ou d'um
capote! Abaixo a far􏿽! abaixo o entremez
da paix􏿽, Porque o Christo 􏿽de gesso e a
cruz de papel􏿽. Abaixo essa parodia
infame em que agonisa N'um Golgota de
lona um clown sem camisa Que, depois
d'expirar convulso, de repente Salta
abaixo da cruz funambulescamente, E
arranca 􏿽 multid􏿽s assombradas e mudas
A esportula--que cai no saquitel do Judas.
N􏿽! o martyr que fez com o seu olhar
sublime O luar do Perd􏿽 para a noite do
Crime, E que abriu com a luz da
bemaventuran􏿽 N'este carcere--a vida,
esta janella--a Esp'ran􏿽, O semi-deus que
est􏿽 com um farol de gloria No topo da
montanha escalvada da historia
Contemplando o infinito e illuminando a
terra, Essa alma que a fl􏿽 da alma humana
encerra, N􏿽 􏿽vossa, n􏿽 􏿽de qualquer
confraria Que disp􏿽 d'uma adega escura,
d'uma pia E d'um padre, n􏿽 tem o
domicilio em Roma, N􏿽 􏿽vinho nem p􏿽 que
se beba ou se coma, Merendando, em
familia. Ess'alma Universal, Essa
concentra􏿽o divina do Ideal 􏿽de quem
soffre, 􏿽de quem geme, 􏿽de quem chora,
􏿽de todos que v􏿽 pela existencia f􏿽a
Tristes--santo, ou her􏿽, ou escravo, ou
proscripto, Calcando o lodo e olhando os
astros no Infinito. Quando Christo inclinou,
morrendo, a fronte calma, Foi a Egreja
buscar-lhe o corpo e o mundo a alma. A
Egreja recolheu a cinza e n􏿽 a luz. E, louca!
julgou ser a esposa de Jesus, Porque
estreitava ao peito um cadaver gelado!
Dez seculos durou na treva esse noivado.
Dez seculos passou a funebre bacante
N'um sepulchro a oscular as gangrenas do
amante, Unido a cada chaga immunda um
beijo em fl􏿽, Tentando reviver ao furioso
calor D'esses beijos um corpo inanimado e
frio. Que tragedia dantesca esse himeneu
sombrio! Pobre Heloisa da morte, o teu
casto Abeillard Nem para ti abriu o azul do
seu olhar, Nem murmurou baixinho uma
palavra s􏿽 E o Deus tornou-se em lodo
abjecto e o lodo em p􏿽 E na campa
nupcial, no talamo--sentina, Da carcassa
d'um Deus funebre Messalina, Putrefacta
expiraste ao p􏿽da podrid􏿽. 􏿽que um
cadaver, seja ou d'um Christo ou d'um c􏿽.
Materia morta, exhala a mesma
pestilencia. S􏿽a alma 􏿽immortal; s􏿽essa
pura essencia, J􏿽ais se decomp􏿽 ou j􏿽ais
se aniquila. O corpo 􏿽simplesmente a
alampada de argila; A alma, eis o clar􏿽.
Por isso o Nazareno Pertence ao mundo.
Tu escolheste o veneno, O cadaver, e n􏿽 o
Espirito, a alvorada. E foi com essa hostia
esplendida e sagrada, Com a alma de luz
do Filho e Maria Que o mundo celebrou a
grande eucharistia, Egreja!... O cora􏿽o da
victima innocente Comungamol-o n􏿽:
diluiu-se ethereamente, Cheio de paz e
amor, no cora􏿽o humano. Foi um sol que
expirou. Onde tombou? No oceano.
Mas como, p'ra poder explorar sem
canceira Com o inferno--essa mina, a
terra--essa melgueira, O velho
Padre-Santo, o Redemptor-Tichborue,
Precisa d'um Jesus sangrento que lhe
adorne O altar, e aos p􏿽 do altar necessita
que esteja Toda banhada em pranto a
noiva eterna, a Egreja, E como o noivo e a
noiva ambos tinham morrido, O Padre
Santo, que 􏿽um padre divertido, Mandou
escripturar ent􏿽 por um cornaca Uma
Egreja a um bordel e um Christo a uma
barraca.
F􏿽a esse Deus! Abaixo esse Deus
salafrario, Deus com ramo de loiro 􏿽porta
do Calvario, Deus que marcha ao suplicio,
􏿽epopeia da D􏿽 Com Cyreneu na frente a
rufar n'um tambor, Deus de quem Harpag􏿽
􏿽caixeiro e Tartufo Guarda livros, um Deus
palha􏿽, um Christo bufo, Um martyr de
aluguel, ebrio, que se apregoa Com
guisos atinir nos espinhos da c'roa, Um
Deus a quem Mandrin passou folha
corrida, Um Deus que fez da morte o seu
modo de vida, Um Deus que representa a
far􏿽 da Paix􏿽 Pintado, ensanguentado a
vinho e a vermelh􏿽, Um Deus que sobe ao
c􏿽, acrobata farnesio, Em aerostato, a vai
no banho d'um trapesio A fazer o signal da
cruz e a prancha com limpeza Identica,
arrojando 􏿽multid􏿽 surpreza Ben􏿽os
anjelicaes variadas e embrulhadas Em
prospectos, e emfim descendo 􏿽
gargalhadas, Para ir repartir em qualquer
sacristia Os lucros da fun􏿽o por toda a
companhia!
Que regabofe! O Christo, um magro actor
de fama, Estropeado galan senil depois do
drama, Lava o gesso e o zarc􏿽 da tromoia
sangrenta Com a esponja do fel na pia da
agua benta. A Magdalena, vesga e sordida
rameira, Guarba os seios de estopa, o
prato, a cabelleira, Limpa a macera􏿽o do
olhar, que causa asco, Feita a rolha
queimada e inutil d'algum frasco De
mercurio ou de absinto, e, como uma
alcateia, Atira-se esfaimada ao bacalhau
da ceia. O bom do Cyrineu, a transpirar,
pragueja; Manda aos quintos a cruz e
manda ao diabo a egreja; Despe a farpela,
e bebe a rir alegremente, D'um trago s􏿽
canada e meia de aguardente. Pilatos o
pan􏿽do e calvo safardana Ronca,
dormindo. A vil soldadesca romana Tira as
barbas, e p􏿽 muitissimo pacata N'um
bahu--os morri􏿽s e espadag􏿽s de lata. O
bom e o m􏿽 ladr􏿽 jogam a bisca. O anjo
Que partira o sepulchro, um robusto
marmanjo, Desaparafusando as azas d'oiro
e o nimbo, Pede ao velho Caiphaz lume
para o cachimbo E grave e silencioso, a
um canto o thesoureiro --Judas--reparte,
empilha em montes o dinheiro Da recita,
tirando o quinh􏿽 do empresario --O
Papa--a quem pertence o Theatro do
Calvario. E dividida a prosa e ruminada a
orgia, Ao sagrado e doirado alvorescer do
dia, L􏿽vai esse rold􏿽 de sevandijas podres,
Cambaleante tropel de ventres feitos
odres. Indo dormir talvez, oh pandega, oh
delicia! Jesus co'a Magdalena--􏿽esquadra
de policia.
Vamos! basta de far􏿽, e basta de far􏿽ntes!
Mil bombas a vapor jorrem desinfectantes
N'esse velho bordel da Egreja--o vaticano,
Colera! faz-te mar, Justi􏿽! faz-te oceano, E
inundae, submergi o Versalhes maldito De
Jehovah--Rei-sol macrobio do infinito.
Vamos, fogo ao covil! E emquanto os
salteadores, Nuncios, bispos, cardeaes,
conegos, monsenhores, --Truculenta
manada obesa de hipopotamos--
Virgem-m􏿽 dos her􏿽s, 􏿽Liberdade!
enxotam'os, E faze-m'os transpor, a
grunhir, sem demoras As fronteiras do
globo em vinte e quatro horas!
LADAINHA MODERNA
S. Le􏿽 13--dai-nos bons bispados, S. Le􏿽
13--que nos possam dar S. Le􏿽 13--vinte
mil crusados. S. Le􏿽 13--f􏿽a o p􏿽d'altar.
Santo Antonelli--dai-nos confessadas Santo
Antonelli--novas, j􏿽se v􏿽 Santo
Antonelli--􏿽melhor casadas, Santo
Antonelli--bem sabeis porque...
􏿽Santo Borgia--ha tanta gente avara!...
􏿽Santo Borgia--ha tantos imbecis!... 􏿽Santo
Borgia--como se prepara, 􏿽Santo Borgia--o
tal xarope... diz!...
Santa de Lourdes--sois incomparavel!
Santa de Lourdes--muita agua deita Santa
de Lourdes--vossa inexgotavel Santa de
Lourdes--fonte... de receita!
􏿽Santa madre--miseros, mesquinhos,
􏿽Santa madre--vemo-nos atonitos, 􏿽Santa
madre--p'ra educar sobrinhos 􏿽Santa
madre que tem paes incognitos.
􏿽Santa egreja mete-nos, no buxo 􏿽Santa
egreja--p'ra d􏿽 tom 􏿽fibra, 􏿽Santa
egreja--alguns te-deuns de luxo 􏿽Santa
egreja--e muita missa a libra
Santo Cinismo--chapa-nos nas faces Santo
Cinismo--um tal estanho emfim, Santo
Cinismo--que tu mesmo embaces Santo
Cinismo--ao v􏿽 cinismo assim.
Santa Intrugice--entrega as almas toscas
Santa Intrugice--􏿽 nossas artimanhas...
Santa Intrugice--Deus destina as moscas
Santa Intrugice--ao papo das aranhas.
S. Regabofe--dai-nos bambochatas S.
Regabofe--at􏿽rollar n􏿽 ch􏿽... S.
Regabofe--pipa e sermonatas! S.
Regabofe--porco e cantoch􏿽!
Santa Barriga--unica santa nossa, Santa
Barriga--grande santa 􏿽! Santa
Barriga--alarga, estende, engrossa Santa
Barriga--e vai da boca aos p􏿽
Santa Pregui􏿽--Santa que consolas, Santa
Pregui􏿽--n􏿽 ha nada igual Santa Pregui􏿽--a
um bom colch􏿽 de molas Santa Pregui􏿽--e
mais etcet'ra e tal!...
S. Venha-a-n􏿽--realisa este desejo, S.
Venha-a-n􏿽--ingenuo e timorato: S.
Venha-a-n􏿽--faz do universo um queijo S.
Venha-a-n􏿽--e faz de n􏿽 um rato!
O MELRO
O melro, eu conheci-o: Era negro,
vibrante, luzidio, Madrugador, jovial;
Logo de manh􏿽cedo Come􏿽va a soltar
d'entre o arvoredo Verdadeiras risadas de
cristal. E assim que o padre cura abria a
porta Que d􏿽para o passal, Repicando
umas finas ironias, O melro d'entre a
horta Dizia-lhe: 􏿽Bons dias!􏿽 E o
velho padre cura N􏿽 gostava d'aquellas
cortezias.
O cura era um velhote conservado,
Malicioso, alegre, prasenteiro; N􏿽 tinha
pombas brancas no telhado, Nem
rosas no canteiro; Andava 􏿽 lebres pelo
monte, a p􏿽 Livre de rheumatismos,
Gra􏿽s a Deus, e gra􏿽s a No􏿽 O melro
despresava os exorcismos Que o
padre lhe dizia: Cantava, assobiava
alegremente, At􏿽que ultimamente
O velho disse um dia:
􏿽Nada, j􏿽n􏿽 tem geito! este ladr􏿽
D􏿽cabo dos trigaes! Qual seria a ras􏿽
Porque Deus fez os melros e os pardaes?!􏿽
E o melro no entretanto, Honesto
como um santo, Mal vinha no oriente
A madrugada clara J􏿽elle andava jovial,
inquieto, Comendo alegremente,
honradamente, Todos os parasitas da
seara Desde a formiga ao mais pequeno
insecto. E apezar d'isto o rude proletario,
O bom trabalhador, Nunca exigiu
augmento de salario.
Que grande tolo o padre confessor!
Foi para a eira o trigo; E armando
uns espantalhos Disse o abbade
comsigo: 􏿽Acabaram-se as penas e os
trabalhos.􏿽 Mas logo do manh􏿽 maldito
espanto! O abbade, inda na cama,
Ouviu do melro o costumado canto,
Ficou ardendo em chamma; Pega na
ca􏿽deira, Levanta-se d'um salto, E v􏿽o
melro a assobiar na eira Em cima do seu
velho chap􏿽 alto!
Chegou a coisa a termo Que o bom do
padre cura andava enfermo, N􏿽 fallava
nem ria, Minado por t􏿽 intimo desgosto; E
o vermelho oleoso do seu rosto Tornava-se
amarello dia a dia. E foi tal a paix􏿽, a
desventura, (Muito embora o leitor n􏿽 me
acredite) Que o bom do padre cura
Perdera... o appetite!
* * * * *
Andando no quintal um certo dia Lendo
em voz alta o _Velho Testamento_
Enxergou por acaso (que alegria! Que
ditoso momento!) Um ninho com seis
melros escondido Entre uma
carvalheira.
E ao vel-os exclamou enfurecido:
􏿽A m􏿽 comeu o fructo prohibido; Esse
fructo era a minha sementeira: Era o
p􏿽, e era o milho; Transmittiu-se o
peccado. E, se a m􏿽 n􏿽 pagou, que pague
o filho, 􏿽doutrina da Egreja. Estou
vingado!􏿽
E engaiolando os pobres passaritos
Soltava exclama􏿽es: 􏿽􏿽uma praga.
Maldictos! D􏿽-me cabo de tudo estes
ladr􏿽s! Raios os partam! andai l􏿽que
emfim...􏿽
E deixando a gaiola pendurada Continuou
a ler o seu latim Fungando uma pitada.
* * * * *
Vinha tombando a noite silenciosa; E caia
por sobre a naturesa Uma serena paz
religiosa, Uma bella tristesa
Harmonica, viril, indefinida. A luz
crepuscular Infiltra-nos na alma dolorida
Um mysticismo heroico e salutar. As
arvores, de luz inda doiradas, Sobre os
montes longiquos, solitarios, Tinham
tomado as f􏿽mas rendilhadas Das
plantas dos herbarios. Recolhiam-se a casa
os lavradores. Dormiam virginaes as
coisas mansas: Os rebanhos e as
flores, As aves e as crean􏿽s.
Ia subindo a escada o velho abbade; A sua
negra, athletica figura Destacava na frouxa
claridade, Como uma nodoa escura. E
introduzindo a chave no portal
Murmurou entre dentes:
􏿽Tal e qual... tal e qual!... Guisados
com arroz s􏿽 excellentes.􏿽
* * * * *
Nasceu a lua. As folhas dos arbustos
Tinham o brilho meigo, avelludado Do
sorriso dos martyres, dos justos. Um
effluvio dormente e perfumado
Embebedava as seivas luxuriantes. Todas
as for􏿽s vivas da materia Murmuravam
dialogos gigantes Pela amplid􏿽
etherea. S􏿽 precisos silencios virginaes,
Disposi􏿽es sympathicas, nervosas, Para
ouvir estas fallas silenciosas Dos
mudos vegetaes. As orvalhadas, frescas
espessuras Presentiam-se quasi a
germinar. Desmaiavam-se as candidas
verduras Nos Magnetismos brancos do
luar. ...................................
* * * * *
E n'isto o melro foi direito ao ninho. Para o
agasalhar andou buscando Umas
pennugens doces como arminho, Um
feltrosito assetinado e brando.
Chegou l􏿽 e viu tudo. Partiu como uma
frecha; e louco e mudo Correu por todo o
matagal; em v􏿽! Mas eis que solta de
repente um grito Indo encontrar os filhos
na pris􏿽.
􏿽Quem vos metteu aqui?!􏿽 O mais velhito
Todo tremente, murmurou ent􏿽:
􏿽Foi aquelle homem negro.--Quando veio
Chamei, chamei... Andavas tu na horta... Ai
que susto, que susto! Elle 􏿽t􏿽 feio!...
Tive-lhe tanto medo!... Abre esta porta, E
esconde-nos debaixo da tua aza! Olha,
j􏿽v􏿽 florindo as assucenas; Vamos a
construir a nossa casa N'um bonito
logar... Ai! quem me dera, minha m􏿽, ter
pennas Para v􏿽r, v􏿽r!􏿽
E o melro hallucinado Clamou:
􏿽Senhor! Senhor! 􏿽por ventura
crime ou 􏿽peccado Que eu tenha
muito amor A estes innocentes?!
􏿽natureza, 􏿽Deus, como consentes Que me
roubem assim os meus filhinhos, Os
filhos que eu criei! Quanta d􏿽, quanto
amor, quantos carinhos, Quanta noite
perdida Nem eu sei... E tudo,
tudo em v􏿽! Filhos da minha vida!
Filhos do cora􏿽o!!... N􏿽 bastaria a natureza
inteira, N􏿽 bastaria o c􏿽 para voardes, E
prendem-vos assim d'esta maneira!...
Covardes! A luz, a luz, o movimento insano
Eis o aguilh􏿽, a f􏿽que nos abraza...
Encarcerar a aza 􏿽encarcerar o
pensamento humano. A culpa tive-a eu!
quasi 􏿽noitinha Parti, deixei-os s􏿽 ... A
culpa tive-a eu, a culpa 􏿽minha, De
mais ninguem!... Que atroz! E eu devia
sabel-o! Eu tinha obriga􏿽o de adivinhar...
Remorso eterno! eterno pesadello!...
........................................... Falta-me a luz
e o ar!... Oh, quem me dera Ser abutre
ou ser f􏿽a Para partir o carcere maldicto!...
E como a noite 􏿽limpida e formosa!
Nem um ai, nem um grito... Que noite
triste! oh noite silenciosa!...􏿽
* * * * *
E a natureza fresca, omnipotente,
Sorria castamente Com o sorriso alegre
dos heroes. Nas sebes orvalhadas,
Entre folhas luzentes como espadas,
Cantavam rouxinoes.
Os vegetaes felizes Mergulhavam as
sofregas raizes A procurar na terra as
seivas boas, Com a avidez e as raivas
tenebrosas Das pequeninas feras
vigorosas Sugando 􏿽noite os peitos das
leoas. A lua triste, a lua merencorea,
Desdemona marmorea, Rolava pelo azul
da immensidade, Immersa n'uma luz
serena e fria, Branca como a
harmonia, Pura como a verdade. E
entre a luz do luar e os sons e as flores, Na
atonia cruel das grandes dores, O
melro solitario Jazia inerte, exanime,
sereno, Bem como outr'ora a m􏿽 do
Nazareno Na noite do calvario!...
Segundo o seu costume habitual, Logo
de madrugada O padre-cura foi para o
quintal, Levando a biblia e sobra􏿽ndo a
enxada. Antes de dizer missa, O velho
abade inevitavelmente Tratava da
hortali􏿽 E resava a Deus Padre Onipotente
Varios trechos latinos, Salvando d'esta
forma juntamente As ervilhas, as almas e
os pepinos.
E j􏿽de longe ia bradando:
--􏿽Ol􏿽 Dormiram bem?...
Estimo... Eu lhes darei o mimo,
Canalha vil, grandissima ral􏿽 Ent􏿽 voc􏿽,
seus almas do diabo, Julgavam que isto
que era s􏿽dar cabo, Da horta e do
pomar, E bico alegre e estomago
contente, E o camello do cura que se
aguente, Que engrolle o seu latim e
v􏿽bugiar!... Grandes larapios!... Era o que
faltava. Voc􏿽 irem ao milho, E a
mim mandar-me 􏿽fava! Pois muito bem,
agora que vos pilho Eu vos ensinarei,
meus safardanas! Voc􏿽 s􏿽 mariol􏿽s, s􏿽
ratazanas, Tem bico 􏿽certo, mas n􏿽 tem
tonsura... E nas manhas um melro nunca
chega 􏿽 manhas naturaes d'um padre-cura.
O melhor vinho que encontrar na adega
􏿽para hoje, ol􏿽... Que bambochata! Que
petisqueira! Melros com chouri􏿽!... E
ent􏿽 a Fortunata Que tem um dedo e um
geito para isso!... Heide comer-vos todos
um a um, Lambendo os bei􏿽s, com tal gana
enfim Que comendo-vos todos, mesmo
assim Eu fico ainda quasi que em jejum! E
depois de vos ter dentro da pan􏿽,
Depois de vos jantar, Voc􏿽 ver􏿽 como o
velhote dan􏿽, Como elle 􏿽melro e sabe
assobiar!...􏿽
Mas n'isto o padre cura titubiante,
Quasi desfallecendo, Atonito de horror,
parou deante D'este drama
estupendo:
O melro, ao ver aproximar o abade,
Despertou da atonia, Lan􏿽ndo-se furioso
contra a grade Do carcere. Torcia,
Para os partir os ferros da pris􏿽, Crispando
as unhas convulsivamente Com a furia
d'um le􏿽, Batalha inutil, desespero
ardente! Quebrou as garras, depenou as
azas E hallucinado, exangue, Os
olhos como brazas, Heroe febril, a gotejar
em sangue, Partiu n'um v􏿽 arrebatado e
louco. Trazendo dentro em pouco
Preso no bico um ramo de veneno, E bello
e grande e tragico e sereno Disse:
􏿽Meus filhos, a existencia 􏿽boa S􏿽quando
􏿽livre. A liberdade 􏿽a lei. Prende-se a aza,
mas a alma v􏿽... 􏿽filhos, voemos pelo
azul!... Comei!--􏿽
E mais sublime do que Christo quando
Morreu na cruz, maior do que Cat􏿽, Matou
os quatros filhos, trespassando Quatro
vezes o proprio cora􏿽o! Soltou, fitando o
abade, uma pungente Gargalhada de
lagrimas, de d􏿽, E partiu pelo espa􏿽
heroicamente, Indo cahir, j􏿽morto, de
repente N'um carcav􏿽 com silveiraes em
fl􏿽.
E o velho abade, livido d'espanto,
Exclamou afinal:
􏿽Tudo que existe 􏿽immaculado e 􏿽santo!
Ha em toda a miseria o mesmo pranto, E
em todo o cora􏿽o ha um grito igual. Deus
semeou d'almas o universo todo. Tudo o
que vive ri e canta e chora... Tudo foi feito
com o mesmo lodo, Purificado com a
mesma aurora. 􏿽misterio sagrado da
existencia, S􏿽hoje te adivinho, Ao v􏿽
que a alma tom a mesma essencia Pela d􏿽,
pelo amor, pela innocencia, Quer guarde
um ber􏿽, quer proteja um ninho! S􏿽hoje
sei que em toda a creatura. Desde a mais
bella at􏿽􏿽mais impura, Ou n'uma pomba
ou n'uma fera brava, Deus habita, Deus
sonha, Deus murmura!...
..........................................
.......................................... Ah, Deus 􏿽bem
maior do que eu julgava!...􏿽
E quedou silencioso. O velho mundo, Das
suas cren􏿽s antigas, n'um momento, Viu-o
sumir exhausto, moribundo Nos
abysmos sem fundo Do tenebroso mar do
Pensamento. E chorou e chorou... A
Egreja, a Cren􏿽. Rude montanha pavorosa,
escura, Que enchia o globo com a sombra
immensa Dos seus setenta seculos d'altura;
O Himalaia de dogmas triumphantes, Mais
eternos que o bronze e que o granito,
Onde aos prophetas Deus falava d'antes
Entre raios e nuvens trovejantes L􏿽dos
confins siderios do infinito; Esse colosso
enorme, em dois instantes Viu-o tremer,
fender-se e desabar N'uma ruina
espantosa, S􏿽de tocar-lhe a aza vaporosa
D'uma avesinha tremula, a expirar!...
......................................
...................................... E, arremessando
a biblia, o velho abade Murmurou:
􏿽Ha mais f􏿽e ha mais verdade Ha
mais Deus com certeza Nos cardos secos
d'um rochedo n􏿽 Que n'essa biblia
antiga... 􏿽Natureza, A unica biblia
verdadeira 􏿽 tu!...􏿽
Nota
O facto em que se baseia este poemeto,
com quanto pouco conhecido,
􏿽absolutamente verdadeiro.
Os melros e algumas outras aves, como os
pintasilgos e os rouxinoes, quando lhes
encarceram os filhos, envenenam-n'os.
Muitas vezes, (sarcasmo tragico,
crueldade sublime!) deixando-os vivos,
arrancam-lhes a lingua!
Ora nem todos os melros, pintasilgos e
rouxinoes assassinam os filhos, quando
lh'os prendem. S􏿽o fazem os mais
extraordinarios, os mais heroicos. O que
nos demonstra que a ac􏿽o 􏿽livre e
responsavel, e n􏿽 um simples producto
d'uma fatalidade organica.
􏿽pena que Michelet ignorasse este facto.
Que paginas divinas que elle n􏿽 teria
escripto! _L'Oiseau_ ficou incompleto.
CIRCULAR
(_Fragmento_)
Deus & Filho. Bazar da f􏿽 Venda for􏿽da.
Pela barca de Pedro, a Judas consignada,
Chega um rico sortido em modas da
esta􏿽o. V􏿽 para cr􏿽! Surpreza! Atten􏿽o,
occasi􏿽 Unica! aproveitai, comprai!
Pechincha certa! Ao bazar do Calvario! Ao
Nazareno! Alerta, Christ􏿽s! 􏿽o desfazer da
feira. Ultimo dia! Toda a casta de objecto
ou de quinquilharia Que esteja em rela􏿽o
com negocios de egreja. Vellas especiaes
para quando troveja, Aplacando de
prompto a colera divina. Sem cheiro e sem
mistura alguma de stearina. Santa Barbara,
a quem a f􏿽christ􏿽se roja, Quando atr􏿽, n􏿽
gasta as vellas d'outra loja, Nem outras
recommenda o concilio de Trento. Em
pacotes de seis. Por junto abatimento.
Agua de Lourdes, fresca. Em pipas, ao
quartilho E em garrafa. Exigir a
marca--Deus & Filho-- Na etiqueta, e na
rolha, a fogo--Providencia-- Genuina s􏿽a
ha 􏿽venda n'esta agencia. Dez annos de
successo e mil milh􏿽s de curas Efficaz
contra a caspa e contra as mordeduras De
cobra cascavel ou c􏿽 damnado ou pulga
Ou percevejo. Faz, Tartufo assim o julga,
Nascer ao mesmo tempo o apetite e o
cabello, B􏿽 no hemorroidal e util no
serampello. Reumatismos, ter􏿽s e outras
molestias varias Cura-as n'um prompo.
Expulsa as bichas solitarias E expulsa o
Demo. Purga: os ventres desentupe-os.
Sem colicas, com tres ou quatro
semicupios. Em cegos de nascen􏿽 e tisicos
de peito Isso ent􏿽 􏿽instantaneo, 􏿽certo o
seu effeito. Uma perna amputada unta-se,
e em dois instantes Torna a crescer e fica
inda maior que d'antes. Em leicen􏿽s n􏿽
falha. Em d􏿽 de dentes, isso 􏿽bebel-a e
ficar sem d􏿽. N􏿽 ha feiti􏿽 Que resista. Uma
vez uma morta tomou-a, Espirrou e ficou
inteiramente boa! Prevenimos no entanto o
publico defuncto Que casos d'estes ha uns
trinta e dois por junto Apenas. Endireita a
espinhela cahida, Extrae callos, reduz
fleim􏿽s, prolonga a vida, Marca a roupa, e
sem damno algum e sem fedor T􏿽na o
cabello e a barba 􏿽primitiva c􏿽.
Reliquias. Sortimento a capricho. Em
ossadas Dos apostolos, hoje as mais
acreditadas No mercado, chegou
variedade infinita, Cabe􏿽s de S. Jo􏿽,
s􏿽vendo se acredita, Onze mil! onze mil, e
damol-as sem ganho! Os pre􏿽s 􏿽segundo o
feitio e o tamanho. (E convem declarar e
advertir desde j􏿽Que ossos de imita􏿽o n􏿽
se encontra por c􏿽 Atestados legaes e
autenticos o provam.) Ha um monumental
e rico S. Christovam, Oito metros de largo
e uns oitenta de altura, Que, como n􏿽 tem
tido at􏿽hoje procura, Decidimos vender,
para liquida􏿽o, A retalho. 􏿽de gra􏿽: o kilo
a meio tost􏿽. O publico achar􏿽sempre
n'este bazar De qualquer santo, ainda o
mais particular, Um esqueleto ou dois
continuamente 􏿽venda. Desejando por􏿽o,
fazem-se de encommenda. Desconto
extraordinario em transa􏿽es por grosso.
Garante-se o fabrico e a solidez do osso
Que empregamos. A todo o esqueleto
montado N'esta casa vai junto, e em forma,
um atestado Escripto sobre a pel' e pela
propria m􏿽 Do proprio santo, a quem a
carcassa em quest􏿽 Pertencera, e que
diz:--Eu juro 􏿽f􏿽de Deus Que estes ossos,
tal qual est􏿽, eram os meus.-- Aviso: 􏿽bom
comprar pe􏿽s sobrecellentes: Pelo menos
um sacro, um nariz e alguns dentes.
Encontram-se tambem avulso qualquer
d'ellas Coccixs, peroneus, omoplatas,
costellas. Tibias, tarsos, enfim tudo que
uma alma pia Possa achar n'um manual
christ􏿽 de osteologia. Em dedos do
Destino ha um soberbo exemplar: 􏿽o
mesmo que escreveu outr'ora a Balthasar
No sal􏿽 do festim a tragica senten􏿽, D􏿽se
por dez tost􏿽s essa caneta immensa Do
Destino ha tambem o olho verdadeiro, Em
vidro ou em cristal, por duzia ou por
milheiro, Negros, verdes, azues, obra
muito barata, Engastado em oiro, em
nickel ou em lata. E hoje a grande moda, e
s􏿽 d'um bello effeito Para bot􏿽s de punho e
alfinetes de peito. Ha emfim mais de dez
milh􏿽s de toneladas, De craneos sem
valor, e de antigas ossadas, Que o
caruncho roeu e converteu em cisco,
Como s􏿽 vinte mil bra􏿽s de S. Francisco, Et
cet'ra... Esse calcareo, (inutil n'esta casa,)
Vende-se para esterco a trez vintens a
raza.
Vera-cruz. Qualidade esplendida,
extra-fina Authentica; a melhor que vem
da Palestina. Em p􏿽 em serradura, em
lascas, aos boccados, E posta em
obra--desde a cama de casados, Desde o
piano d'Erard ou da credencia at􏿽Ao
baculo do bispo e ao _steeck_ do _crev􏿽.
Trabalhada a primor em mil objectos
varios: Em facas de cortar papel ou em
rosarios, Em imagens do papa ou em
boquilhas, em Cabides, casti􏿽es, prezepes
de Bethlem, Bandejas para ch􏿽 agnus-Dei,
cruxifixos, Lavatorios, etc. Ao _rabais_.
Pre􏿽s fixos. Nos nossos armazens com
serras a vapor Vendemol-a igualmente, a
cruz do Redemptor, Em ripas; em
pranch􏿽s e em traves collossaes Para
marcenaria e construc􏿽es navaes.
...........................................
...........................................
Como hoje o negocio est􏿽muito bicudo,
Trespassa-se o armazem do Calvario com
tudo Que tem dentro. Escrever para o
nosso bazar, Largo dos Intruj􏿽s, 5, 1.^o
andar.
A BEN􏿽O DA LOCOMOTIVA
A obra est􏿽completa. A machina flameja,
Desenrolando o fumo em ondas pelo ar.
Mas antes de partir mandem chamar a
Egreja Que 􏿽preciso que um bispo a
venha baptizar.
Como ella 􏿽com certeza o fructo de Cain,
A filha da raz􏿽, da independencia humana,
Botem-lhe na fornalha uns trechos em
latim, E convertam-n'a 􏿽f􏿽Catholica
Romana.
Devem n'ella existir diabolicos peccados,
Porque 􏿽feita de cobre e ferro; e estes
metaes Sahem da natureza, impios,
escommungados, Como sahimos n􏿽 dos
ventres maternaes!
Vamos, esconjurai-lhe o demo que ella
encerra, Extrahi a heresia ao a􏿽
lampejante! Ella acaba de vir das forjas
d'Inglaterra, E hade ser com certeza um
pouco protestante.
Para que o monstro corra em fervido
galope, Como um sonho febril, n'um doido
turbilh􏿽, Al􏿽 do machinista e necessario o
hyssope, E muita theologia... al􏿽 d'algum
carv􏿽.
Atirem-lhe uma hostia 􏿽bocca famulenta,
Preguem-lhe alguns serm􏿽s, ensinem-n'a a
resar, E lancem na caldeira um jorro
d'agua benta, Que com agua do c􏿽 talvez
n􏿽 possa andar.
A HYDRA
(Vendo passar seminaristas)
Olhae, vede-os passar em legi􏿽s escuras,
Intonsos, apezar de todas as tonsuras, Com
um ar imbecil, caliginoso, estranho,
Marcados a tesoira assim como um
rebanho, E envoltos em crueis balandraus
de entremez, --As lobas, sob as quaes ha
lobos muita vez!... 􏿽galuchos da F􏿽
recrutas do Divino, Que um chocalho de
bronze hiperbolico--um sino-- Faz erguer,
faz dormir, faz deitar, faz andar, Eu n􏿽 sinto
por v􏿽, _marionetes_ do altar, Nem odio
nem rancor. Sois victimas. Loyola
Dobra-vos a cerviz com a canga da estola,
E jungindo-vos, bois nocturnos, ao arado,
Rasga comvosco o negro e funebre vallado
Aonde o vosso Deus semeia para a
infancia A fl􏿽 da estupidez e o trigo da
ignorancia. A Egreja, a cortez􏿽sensual de
ventre obeso, Hontem mulher de Christo e
hoje mulher de Creso, Para a rapina
odiosa e vil de que se nutre Mochos,
deu-vos a calva ortodoxa do abutre!
Matilha de Le􏿽 XIII a vossa preza 􏿽o
mundo, Tartufo, bode obsceno e theologo
profundo, Ensina-vos, conforme o ritual
mais perfeito, A cruzar, como S. Francisco,
as m􏿽s no peito, Sob a sotaina arqueando a
gravidez das pan􏿽s, A impor jejuns,
benzer caix􏿽s salgar crean􏿽s, A grunhir, a
ladrar serm􏿽s, missas cantadas, E a
escripturar o c􏿽 por partidas dobradas. N􏿽
vos odeio n􏿽, palidos salafrarios; V􏿽 sois
unicamente os comparsas mortuarios Do
papa, esse Barnum que assombra a
multid􏿽, Com o Espirito Santo a vir
comer-lhe a m􏿽 Satanaz a frigir
(sarrabulhada tragica!) Heresiarchas de
estopa em caldeir􏿽 de magica, E Jehovah,
um urso estupido e cruel A lamber-lhe a
sandalia, a babojar-lhe o anel, E a amea􏿽r
furibundo este mundo precito A rufos de
trov􏿽s no tambor do infinito. A Egreja
􏿽uma serpente escura, bicho immundo,
Gigantesco reptil que d􏿽a volta ao mundo,
E em cujas espiraes ebrias de raiva insana
Um Lacconte immortal--a consciencia
humana; Ha seculo se estorce em convuls􏿽
atroz. Os ellos d'esse monstro implacavel
sois v􏿽, Sacristas. A cabe􏿽 􏿽o papa.
Ora as serpentes Tem a for􏿽 na cauda
e o veneno nos dentes.
A VALLA COMMUM
I
Valla commum--tasca nojenta, Mesa
redonda sepulchral, Aonde a toalha
crapulenta 􏿽um len􏿽l roto do hospital,
E aonde as larvas proletarias
Devoram--lugubres festins!-- Craneos de
heroes, ventres de parias, Carcassas
podres de arlequins,
Ao contemplar-te, 􏿽libertina, Um nojo
immenso me accomette: Tens a avidez de
Messalina Na boca negra de Machbet!
Na treva aziaga o crime o os vicios, Para o
_menu_ do teu jantar, D􏿽-te as crean􏿽s dos
hospicios E as barreg􏿽 do lupanar.
Em teu estomago de hyena V􏿽-se
abysmar, monstro cruel, Rios de sangue
com gangrena E ondas de lagrima com fel.
Cloaca putrida e funerea, Feira da ladra
edionda e vil, 􏿽 o sagu􏿽 onde a miseria
Despeja 􏿽noite o seu barril.
Trituras, lobrega sargeta, Sem que o
horror te engasgue e abafe Os seios
virgens de Julieta E a pan􏿽 obscena de
Faltstaff.
Cinismo atroz que a alma oprime, Fetida e
funebre impudencia! A boca esqualida do
crime Posta na boca da innocencia!
O abutre e a pomba, o cardo e a anemona
Na mesma leiva apodrecida: Tropman
chegando-se a Desdemona, E Papavoine a
Margarida!
Virtude, amor, crime, deboche
Promiscuamente a fermentar! Mimi Pinson
e Rigolboche! Cain e Abel! estrume e luar!
Oh, _bulimia_ tenebrosa! Monstruosidade
apocalyptica Tudo te serve: ou cancro ou
rosa, Ou fl􏿽 doirada ou fl􏿽 syphlitica.
Anjos que vem do paraiso, Candura
etherea e perfumada, Feitos d'um beijo e
d'um sorriso, N'algum jardim, de
madrugada.
V􏿽 confundir-se n'essa guella, N'essa
pestifera anarchia Com quantas lepras
uma viella Possa escarrar n'uma enxovia!
As guilhotinas homicidas Pelo carrasco, o
fiel criado, Mandam-te o _lunch_ 􏿽
escondidas No seu _panier_
ensanguentado,
E o cadafalso, um salteador, Na noite livida
estrangula Feras, que arroja no estertor
Aos antros podres da tua gulla.
Nada que te encha ou te sufoque. Monstro,
absorver 􏿽o teu destino. Depois da ceia de
Moloch, Ruges co'a fome de Hugolino
Sempre a comer, monstro insensato, E a
boca sempre escancarada! O esquife,
harpia, eis o teu prato! E o teu talher--a
p􏿽e a enxada!
Valla commum, despenhadeiro De lirios
brancos e de sapos, Furna onde o Nada,
esse trapeiro, Faz o armazem dos seus
farrapos.
Quantos heroes--oh raiva, oh odio! Teu
lobo amargo apodreceu Desde Aristogiton
e Harmodio At􏿽Cam􏿽s e Galileu!
Deus que te fez sempre esfaimada, Deu-te
tambem, pan􏿽 gigante, Por cosinheiro
Torquemada, E Bonaparte por marchante.
Atila e Nero--o tigre e o lobo, Noventa e
tres, Saint Barthelemy, Eis hecatombes
para o globo Que s􏿽 banquetes para ti.
Quando famelica te nutres D'um
Warterloo, grandiosa prosa, Sustentas
todos os abutres S􏿽co'as migalhas da tua
mesa!
Para o teu ultimo festim, Gargantua
sordido e voraz, Foi aos a􏿽ugues de Berlim
A Morte a encher o seu cabaz.
Es magro e funebre molosso Ha milh􏿽s
d'annos sempre a uivar: 􏿽Guerra, traz-me
o meu almo􏿽! 􏿽Peste, traz-me o meu jantar!
Servo, Fellah, Moujik, Escravo, Plebe sem
p􏿽, mendigos n􏿽s, Bocas que tem ainda o
travo Do fel da esponja de Jesus;
Martyres, victimas, proscriptos, Legi􏿽 de
heroes resplandecente, Que
ensanguentados e maldictos Revoluteiam
febrilmente,
Raios no olhar, grilh􏿽s nos pulsos, Ao c􏿽
em brasa a fronte erguida, Nos sete
circulos convulsos, Do inferno tragico da
Vida;
Todo esse exercito ululante Quo em rouco
e pavido tropel Vem pela historia humana
adiante, Desde Cain at􏿽Rossel;
Tudo que estoira de miseria, Tudo o que
ruge na oppress􏿽, Desde o grilheta da
Siberia At􏿽ao paria do Indost􏿽;
Todo esse barbaro massacre, Da guerra,
enorme Leviatan, Zama, Farsalia, S. Jo􏿽
d'Acre, Jena, Austerlitz, Sedan;
Todo esse vomito de horrores E do
catastrophes sombrias, Profundo atlantico
de dores, Negro Himalaia de agonias,
Todo esse lodo Deus impelle-o Ao teu
estomago sem d􏿽 􏿽 a barriga de Vitellio,
Cheia das pustulas de Job!...
II
E entre esse tabidos fermentos, Entre
esses horror de coisa m􏿽, F􏿽sa 􏿽procura
de alimentos, Um porco
immundo--Satanaz.
Essa latrina de Pandora, Pensando bem, 􏿽a
final A escarradeira onde expectora
Jehovah a bilis immortal.
Como elle 􏿽velho, com o frio T􏿽se; o
Prudhome diz-lhe ent􏿽: --Deus, aqui tens
este bacio... N􏿽 v􏿽 cuspir no meu sal􏿽.
E 􏿽 vezes do alto do infinito, Talvez depois
d'um mau jantar, O Padre Eterno faz
cabrito E enche o bacio a transbordar.
E o pote enorme onde cuspinha O
truculento Manitu, Sem ninguem v􏿽, logo
􏿽noitinha Vai despejal-o Belzebut.
Vai despejal-o, 􏿽crueldade! L􏿽nessas
torridas gal􏿽, Onde Deus assa a
humanidade No fogo--a que elle aquece os
p􏿽!
Porque, 􏿽eternos desherdados Da ra􏿽
impura de Cain, Morrendo sois
encaixotados Sem agua benta e sem latim.
Se algum vos d􏿽 􏿽j􏿽com ran􏿽, 􏿽j􏿽latim
para hospitaes, Feito com cisco de ripanso
E as varreduras dos missaes.
A egreja d􏿽 barata feira! Ao vosso ultimo
estertor Oleos de azeite de purgueira E
ostias de trapos com bolor.
Por isso a valla 􏿽um al􏿽p􏿽 De d'onde rue a
todo instante Um tremedal de podrid􏿽
N'um mar de enxofre flammejante.
Castigo barbaro e nefando! Em
monstruozos caldeir􏿽s Ondas de pez
tonitruando, Roucos, uivando, aos
borbot􏿽s,
E dentro v􏿽, pobres captivos, Em sangue,
em chagas, todos nus, A morrer sempre e
sempre vivos, Sempre a coser e sempre
crus!
Em lagos rutilos de estanho, Bramindo
pragas em latim, Milh􏿽s de herejes tomam
banho... Olhae que espiga um banho
assim!...
Estes frigidos em certans, Dentro do azeite
que extravasa. Outros perneando, como
rans, Na empala􏿽o d'um raio em brasa!
Uns s􏿽 torrados sobre grelhas. E os diabos
vem continuamente N'aquellas nadegas
vermelhas Cravar com furia o seu tridente!
Muitos estoira-lhes a pan􏿽 Entre os
colericos anneis De vinte cilhas, que
lembran􏿽! Feitas de cobras cascaveis!
E em torno aos fulgidos brazeiros Onde
um bom Deus, poderoso e justo Rebenta
as almas aos milheiros, Como as castanhas
n'um magusto,
Pincham selvaticos fandangos Satans
freneticos e maus, Rabudos como
ourangotangos, Cornudos como Menelaus!
E 􏿽por n􏿽 dar uns seis ou sete Tost􏿽s ao
odre de um abade Que a Providencia vos
derrete, Impios, por toda a eternidade!
Congrua e folar--palha e bolota Ao teu
abade, impio, n􏿽 d􏿽? Pois bem, Deus p􏿽-te
de compota N'um molho ardente de
aguarraz.
Ah, tu rebelde, ah, tu faminto, Nunca a
chorar foste depor Tres mil remorsos com
um pinto Nas m􏿽s d'um padre confessor?
Ah, tu mandaste a Egreja 􏿽fava? Nunca
compraste uma cartilha? Cose-te em pez,
torra-te em lava. Anda, meu besta, meu
pandilha!
􏿽em quanto Deus te frita os untos E o
cora􏿽o n'uma panella, Que vida airada os
bons defunctos Passam no c􏿽!... que vida
aquella!
Pois c􏿽por baixo aos magan􏿽s Nunca
tambem lhes faltou nada; Tiveram cren􏿽s e
milh􏿽s... Deus gosta assim de gente
honrada.
Comeram optimos jantares, Perfeitamente
digeridos; Foram christ􏿽s e titulares. Bons
paes, bons filhos, bons maridos.
Aos seus palacios luculianos (O que
􏿽virtude e pundonor!) Durante quasi
oitenta annos N􏿽 bateu nunca um
s􏿽credor!
Amaram todos os pecados, Que s􏿽
mortaes, mas s􏿽 gentis, Com todo o
encanto fabricados Para os banqueiros,
em Pariz.
Dormira sempre n'um bom leito Co'as mais
formosas cortez􏿽. E o ventre sempre
satisfeito, E livre... todas as manh􏿽.
Gozaram sim, mas na verdade Foram
􏿽missa muitas vezes, Com toda a pompa e
magestade Dentro dos seus _landeaus_
inglezes.
Se algum remorso impertinente As almas
castas lhes mordia, Catava-o logo com um
pente Um bispo n'uma sacristia.
Crendo nos dogmas mais profundos, E
achando a vida um bom lameiro Tiveram
sempre Auctor dos Mundos Por um
perfeito cavalheiro.
Deram de gra􏿽 a varios santos, A Jesus
Christo e 􏿽m􏿽 das D􏿽es C'roas, chin􏿽,
tunicas, mantos, Burseguins d'oiro e
resplendores.
Por isso o tal Author, que acabo Do vos
citar, os tratou bem; Deus 􏿽levado do
diabo S􏿽para os pulhas sem vintem.
E quando ao cabo da func􏿽o, --Velhos sem
dentes, j􏿽na espinha, A Morte, de chapeu
na m􏿽, Lhes foi tocar 􏿽campainha,
Para espicharem dignamente,
Agasalhados na sua cama, O papa
enviou-lhes de presente A ben􏿽o n'este
telegrama:
􏿽Remete ben􏿽o Divindade. Legado Pedro
quinze contos. Escrevi c􏿽 Hotel Trindade
Tenham chegada quartos promptos.􏿽
E ap􏿽 um grande funeral, A que assistiu o
_high-life_ inteiro, Desde o arcebispo ao
general E desde o principe ao banqueiro,
Seus corpos, onde n􏿽 remexe O verme vil
que trinca os parias Embalsamados do
escabeche Em grandes latas funerarias,
No palacete d'uma campa Foram
guardados, qual thesoiro, Dentro d'um
cofre em cuja tampa Ha versos maus em
letras d'oiro.
E as almas, promptas para a festa Do seu
olimpico noivado, Com uma aureola na
testa E azas soberbas no costado,
Partiram leves, subrepticias. Entre o
esplendor de cem auroras, L􏿽para o Reino
de Delicias. Onde estar􏿽 a estas horas
Feitas beb􏿽, comendo um keque, Tocando
frauta ou tamboril, Ou arrastando a aza em
leque Ingenuamente... 􏿽 _onze mil_.
Ah, miseravel, ah precito, Que l􏿽dos
baratros christ􏿽s Ergues ao Tigre do
infinito Os dois archotes das tuas m􏿽s,
V􏿽tu como 􏿽conveniente, E justo em todos
os sentidos, Herdar um homem d'um
parente Seiscentos contos garantidos,
Gozar, sem medo 􏿽vida eterna, Toda esta
bella patuscada, Desde a luxuria mais
moderna 􏿽gula mais civilisada,
E ao terminar t􏿽 bom fadario Morrer,
ouvindo alguns latins, Com treze kilos de
calcareo, --Onze na alma, e dois nos rins;
E, na mais intima harmonia Com Satanaz e
com Jesus, Ir para a cova 􏿽luz do dia, De
farda rica e de gran-cruz,
E entre tocheiros deslumbrantes Ser bem
comido e bem jantado Por alguns vermes
elegantes N'um gabinete reservado!...
A S􏿽TA DO SNR. ABADE
O meio dia bateu j􏿽na torre da Egreja. A
aldeia 􏿽silenciosa e triste. O sol flameja.
Entre o surdo murmurio abrasador da luz,
Como n'um grande forno, os grandes
montes nus Recosem-se, espirrando as
urzes d'entre as fragas. Um mendigo
demente e coberto de chagas Dorme
estirado ao sol n'uma modorra espessa; E
o mosqueiro febril nas lepras da cabe􏿽
Enterra-lhe zumbindo o caustico das lan􏿽s.
Andam s􏿽pela rua os porcos e as crean􏿽s.
Fome, desola􏿽o, luto, viuvez, miseria Na
aldeia morta. A terra esqualida e funerea
Em logar das can􏿽es da abundancia e do
amor, Do trigo verde a rir dentro da sebe
em flor, Calcinada e cruel cospe
violentamente S􏿽o cardo torcido,
epilectico, ardente, Rompendo duro e
hostil, como a praga blasfema D'um
assassino quando um carcereiro o algema.
Secaram-se de todo as fontes e os regatos.
As cobras na aridez crepitante dos matos
Silvam. O ar carboniza as arvores
sequiosas N'uma rutila poeira intensa de
ventosas. Dos montes nus al􏿽 nas seccas
epidermes Os rebanhos s􏿽 como um
pulular de vermes. E a bobada do c􏿽,
concha de zinco em braza, Onde n􏿽 passa
a nodoa aerea d'uma aza, Implacavel
contempla a terra solitaria, Como um sult􏿽
fitando a carcassa d'um paria!
E o tifo germinou n'esta miseria adusta. A
epedimia, a alma errante de Locusta.
Diabolica e subtil fermenta envenenada
No asfixiante esplendor da atmosphera
esbrazeada. D'entro da escurid􏿽 soturna
dos casebres Os velhos alde􏿽s, minados
pelas febres. Agonisam; e em seu delirio
derradeiro, Entre o concavo som da
enxada do coveiro E o rouco psalmodear
dos latins agoirentos, Ouvem loucos de
dor os funebres lamentos Dos magros bois
de olhar moribundo e sereno. Que est􏿽
l􏿽baixo ao p􏿽do estabulo sem feno, A
mugir, a mugir, por terra, abandonados
Juncto ao velho esqueleto inutil dos
arados!
A espa􏿽s da profunda e tragica nudez
D'uma choupana irrompe um grito de
viuvez, Um clamor de orfandade... E o sino
chora ent􏿽 Lagrimas sepulcraes de bronze
na amplid􏿽. A colera de Deus, cujo olhar
encendeia, Correu como uma loba
hidrophoba na aldeia. N􏿽 ha lume no lar,
nem ha p􏿽 nos armarios. Entre os dedos
das m􏿽s famintas os rosarios Passam
piedosamente e inutilmente, em quanto A
Morte, a hiena magra e vesga, espreita a
um canto Um ber􏿽 onde agonisa um anjo,
ho dor cruel! Como um roto mendigo
􏿽porta d'um vergel Sofregamente espreita
algum fructo outoni􏿽 A tombar j􏿽sem c􏿽
d'um ramo j􏿽sem vi􏿽!
E a aldeia invoca, implora os anjos
tutelares. Morre de fome e veste as santas
nos altares Com oiro e com brocado, Os
cirios noite e dia Alumiam a branca
imagem de Maria, Como tremulos ais de
luz agonisantes A erguer-se para o c􏿽!
Prociss􏿽s ululantes De penitencias v􏿽
convulsas, desgrenhadas, Esfacellando os
p􏿽 nas pedras das cal􏿽das, Dilacerando o
peito, arrancando os cabellos. E com mil
vis􏿽s torvas de pesadellos, Uivando a Deus
em rouco e barbaro clamor Que seja pae
que veja essa infinita d􏿽, E l􏿽ce 􏿽uella
immensa angostia, 􏿽uella magoa Um olhar
onde emfim brilhe uma gota d'agua!
............................................... Em v􏿽, em
v􏿽, em v􏿽! A tarde o sol frenetico Morre
congestionado, estonteado, apopletico, E
de manh􏿽explue na lividez do oriente,
Caustico, a chammejar como um remorso
ardente! E nas noites febris, sem ar, sem
roxinoes, E que o azul 􏿽um brazeiro
esplendido de soes E em que parece que
ha dispersas na atmosphera As
vaporisa􏿽es surdas d'uma cratera, Por
detraz da montanha asperrima, escalvada,
A lua cheia, rubra, opaca, ensanguentada,
N'um silencio soturno, esmagador, que
opprime, Rompe sinistra--como a appari􏿽o
d'um crime!
E comtudo n'aquella aridez flamejante,
Sem um ramo frondoso em que uma ave
cante, N'aquelle illimitado incendio
abrasador, Oh sarcasmo cruel! ha dois
oasis em flor, Com duas tropicaes
plethoras de verdura:
Um 􏿽o cemiterio, o outro o passal do cura.
No cemiterio a Vida impetuosa e forte
Rompe a cantar do ventre uberrimo da
Morte. Pampanos, silveiraes, cardos,
ortigas, rosas, Plantas meigas de idilio e
plantas tenebrosas, A mandragora, a
murta, a madresilva, o feto, Tudo isto a
latejar, a fecundar, repleto, N'um
emaranhamento anarchico pulula Doido
de sol, febril de seiva, ebrio de gula! Ha
uma saturnal juncto de cada cova, Um
cadaver que chega 􏿽uma iguaria nova,
Que os vermes decomp􏿽m em gangrenas
protervas Para a sofreguid􏿽 muda, obscura
das hervas. E quando do seu antro a larva
tumular Diz 􏿽planta: 􏿽Aqui tens na meza o
teu jantar, Vem comel-o!􏿽 milh􏿽s de
raizes--reptis, Sanguesugas que tem por
bocas bisturis, V􏿽 haurir, absorver,
vampirisar no fundo D'essa cloaca obscena
esse banquete immundo, Um fetido e
viscoso esterquelinio de horrores, Que 􏿽o
p􏿽 que Deus fez para engordar as flores! E
da tumba do hospicio hora a hora resvalla
Uma carga de entulho humano para a
valla. Juntam-se aos nove e aos dez, rimas
de carne morta, Na mesma cova. A edade
e o sexo pouco importa. Confundem-se no
podre a􏿽ugue subterraneo. E em quanto
uma raiz de lirio suga um craneo E uma
pustula d􏿽o perfume a um nectario, No
azul celeste paira o corvo sanguinario, O
tumulo suspenso, o esquife que se eleva,
Brandindo em cada flanco uma foice de
treva! .................... Dir-se-hia que o
Destino, O velho Thug, o velho e tragico
assassino, Depois de uma hecatombe
insensata e brutal, A escondera, lan􏿽ndo
em cima um madrigal, Um manto de
verdura e corolas vermelhas, Todo
estrellado do oiro em brasa das abelhas.
E o presbiterio? Olhae:
Branco como um noivado.
Trepadeiras 􏿽porta e pombas no telhado.
Ha n'esse ninho occulto em verdura
frondosa Como que um bem-estar simples
e c􏿽 de rosa. Era um ninho discreto, um
bom ninho fiel, Para sugar um favo a tres
luas de mel. Anacreonte, o velho erotico
divino, Contente encerraria alli o seu
destino, Pobre, alegre, feliz, sem
remorsos, sem dores, A calvicie jovial sob
um chin􏿽de flores, O copo sobre a meza, a
musa sob os joelhos, Ao ar livre, a cantar
os desejos vermelhos, A belleza, o prazer,
a juventude e o s􏿽, Com a gra􏿽 d'um merlo
e a voz d'um rouxinol.
Vejamos essa estancia idilica e tranquilla.
Mas cuidado! ha l􏿽dentro um padre e um
c􏿽 de fila. E ambos mordem. Mas, como
ambos roncam a sesta, Entremos. Logo
aqui no pateo pela fresta Da tenebrosa
adega aberto um poucachinho Sahe um
aroma intenso e rico de bom vinho. O
abade 􏿽beberr􏿽. Casca-lhe muito e bem.
L􏿽pinga como a d'elle isso ninguem na
tem. Sabe da poda, 􏿽mestre! A adega
at􏿽d􏿽gosto Entrar a gente l􏿽n'uma tarde de
Agosto. Que frescura, que aceio e que
nectar! No􏿽Precisaria ali da capa de Japhet
A todo o instante, e o proprio abade e mais
a ama Tem feito d'essa adega o seu quarto
de cama Varias vezes... O amor pella-se
por bom vinho. Se Venus foi sua m􏿽, Bacho
foi seu padrinho. Sensata opini􏿽 que o
nosso abade aprova, Sobretudo se o vinho
􏿽velho e a mulher nova. Nos rotundos
toneis e nas cubas inchadas, Pan􏿽s
monumentaes prenhes de gargalhadas,
Dormem alegremente e silenciosamente
Os trinta mil pif􏿽s que o
Padre-Omnipotente, Em seu alto designio
e enfinita bondade, Destinou para o odre
insaciavel do abade. E na fresqueira--um
rico e secular thesoiro-- Ambrosias ideas
velhissimas, c􏿽 do oiro, Mormuram baixo
em voz cristalina e maviosa Uma can􏿽o de
amor entre um beijo e uma rosa, E em que
a rosa abre ao beijo as petalas vermelhas
Sob fr􏿽ito alado e diaphano de abelhas.
Com t􏿽 raro elixir, que 􏿽como um sol
poente, Que j􏿽n􏿽 d􏿽calor, mas que
illumina a gente, O proprio Satamaz,
fa􏿽-lhe essa justi􏿽, N􏿽 tinha repugnancia
alguma em dizer missa, E eu mesmo,
􏿽minha vergonhosa confic􏿽o, Mas em
suma, que diabo!... eu dava em sachrist􏿽!
E junto 􏿽dega existe a tulha sempre
cheia... Mas subamos depressa emquanto
o abade orneia A dormir pois se acorda e
me conhece, foi-se A visita e per cima
arruma-me algum coice. Vamos p􏿽ante p􏿽
de vagarinho. A salla 􏿽vasta e branca. Tem
nos muros a adornal-a Sagrados cora􏿽es
de Jesus flamejantes, M􏿽s, de Deus com
olhar no c􏿽 e dez trinchantes, A
traspassar-lhe o peito, um Pio nono a
cores. Cordeirinhos pascaes, anjos,
araras, flores, Tudo em missanga, e emfim
um D. Miguel primeiro A froque, que eu
comprava a peso de dinheiro. Do tecto
enegrecido em bategas jucundas Pendem
bellas ma􏿽s camoesas rubicundas, Cachos
d'uvas ainda a rir, peras marmelas,
Encaixilhado tudo 􏿽volta com morcellas.
Em seis bah􏿽s de coiro e em arcas de
castanho Guarda o cura o bragal precioso,
o rico amanho Caseirinho,--len􏿽es d'uma
finura extrema, 􏿽 grozas, rescendendo
alecrim e alfazema! E, segundo se diz,
tambem deve haver n'essas Arcas
monumentaes muita somma de pe􏿽s. Ao
fundo a livraria: uma pequena estante
N'uma banca ordinaria e simples de
estudante. No centro tem um v􏿽 com um
Christo inaudito Nas vascas do caruncho
agonisando afflicto, Burlesco manipan􏿽
alvar de f􏿽mas toscas, Negro--das
dejec􏿽es sacrilegas das moscas. Soltos na
estante em quatro ou cinco pratelleiras
Ripan􏿽s de ora􏿽es, de serm􏿽s e de
asneiras, Que fornecem ha j􏿽trinta annos
exactos P􏿽 de espirito ao cura e p􏿽 do
corpo aos ratos. E entre os livros ha tudo.
􏿽uma loja de ad􏿽lo. Pacotes com rap􏿽 um
baralho, um marmelo, Esporas, saquiteis
com semente, de ervilha, Garfos, um
grande corno, um copo, uma rodilha.
Malgas com marmelada e frascos com
compotas, E at􏿽mesmo um chapeu
sebento e um par de botas! Sobre a mesa o
tinteiro e o solideo. E aberto Um breviario
tal, que cheirado de perto Fulmina, um
breviario exotico, onde emfim Ha j􏿽muito
mais sebo e tra􏿽 que latim!
E a todo e qualquer canto em rumas
assassinas, Marmeleiros, bord􏿽s e m􏿽as e
clavinas. E pendendo sombria e, tragica
d'um muro, Come se fosse a pel' d'um
grande monstro escuro, A loba, um
balandrau de dobra espectraes, Feito para
espantar as almas e os pardaes,
Contigua 􏿽salla existe a alcova. 􏿽l􏿽que
dorme O hipopotamo. Vede: O catre e
desconforme; Cabiam n'esse vasto
enxerg􏿽 􏿽vontade A pregui􏿽 d'um porco e
a luxuria d'um frade, O cura espapa􏿽do,
esbandalhado, ronca, Inuda-lhe o suor
odioso a testa bronca, O cacha􏿽 taurino e
as papeiras que v􏿽 Desde o queixo ao
umbigo em gra􏿽 ondula􏿽o. A b􏿽a
comilona, erotica, sensual Traz 􏿽lembran􏿽
o fauno obsceno e o canibal. E a dentadura
podre, esse armazem de guano, 􏿽qual
desmantelado aqueducto romano. Que
sordido animal! que bandulho! que bojo!
Tem cerdas na cabe􏿽 e nas orelhas tojo! E
o nariz? o nariz! que farol! que obelisco!
Pantagruel deu-lhe a cor, Gargantua
deu-lhe o risco. 􏿽o nariz de Falstaff, epico,
em grando gala, Purpureado e incendiado
a fogos de bengala. De quando em quando
a ama, herculea mocetona, --Um
peix􏿽!--sempre alegre e sempre
brincalhona, Vem ligeiro enxotar com
precau􏿽es imensas Os insectos sem f􏿽e os
moscamos sem cren􏿽s, Que ousam dep􏿽,
que horror! a tal coisa indecente Nos
rubros alcantis d'esse nariz ingente. Eu
nunca vi, meu Deus, nariz t􏿽 exquisito!
Ruge como um trov􏿽, silva com um apito!
􏿽talvez o nariz por onde tocar􏿽Trombeta o
Creador no val' de Josaphat! Dos mais
complexos sons percorre a escala...
alcoolica: Umas vezes imita uma frauta
bucolica E outras um cavernoso org􏿽 de
Rilhafolles, Com um grande Titan bebado
a dar as folles. As vezes um fragor rouco
de temporal Quer bramir atravez do
Himalaia nasal Do abade, mas achando os
dois toneis do monte Entupido de esterco
infecto e de simonte, Retrocede e l􏿽vai por
outro sorvedoiro Expluir--com profundo e
tremebundo estoiro!...
.............................................. Mas que
sastifa􏿽o beatifica se nota Na vasta
estupidez d'aquella cara idiota! E sabeis
porque dorme olimpico e risonho O
abade? 􏿽porque teve inda ha pouco esse
sonho: Sonhou ver desfilar, oh ventura
illusoria! Um prestito pag􏿽, um cortejo de
gloria, A acclamal-o. Na frente uma vara
sombria De bacoros roncava em c􏿽o esta
poesia:
Deus fez o porco para o frade.
Deus destinou-nos os presuntos
Para os seus untos, Senhor abade.
Grunhamos, pois, grunhamos todos
juntos: Viva o abade! Viva o abade!!
Succediam-se logo em manadas e em
bando Perdizes e perus e patos
conclamando:
Patos, perus, galinhas e perdizes
Somos felizes! Oh, que ventura!
Como 􏿽doce morrer tendo a certeza
De bem assados em manteiga ingleza
Ir para a meza Do senhor cura!
Oh, que ventura! oh, que ventura!...
N'um carro triumphal trovejava depois Um
tonel arrastado a cem juntas de bois:
O sonho, o canto e a dan􏿽 Vivem
na minha pan􏿽, Que trilogia!
Sonhar, dan􏿽r, cantar! A tristeza
morreu um bello dia N'um lagar.
V􏿽 Padre-mestre, com bizarria!
Cantaro 􏿽b􏿽a, toca a virar!
Meu Padre mestre, nunca o teu bico
Provou ainda vinho t􏿽 rico, Sem
confei􏿽o! Vinho como este
Nunca o bebeste, N􏿽!
V􏿽Padre-mestre, p􏿽-me um repuxo,
Muda-me todo para o seu buxo,
Meu tubar􏿽! Depois rolemos, 􏿽
gargalhadas, Dando umbigadas,
Dando pan􏿽das No ch􏿽!...
Um gracioso tropel de donzellas formosas,
Frescas e virginaes como bot􏿽s de rosas, A
saia curta, o rir breigeiro, o arzinho
honesto, Deixando v􏿽 a perna e fantasiar o
resto, Vinha cantando atraz esta can􏿽o
feliz, Ao som de theorbas d'oiro e av􏿽as
pastoris:
Somos tresentas sessenta e seis,
Olhos maganos, bocas em flor...
Dignas de reis! E vimos todas, senhor
Prior, Dar-vos aquillo que v􏿽 sabeis...
Somos tresentas sessenta e seis! Um
calendario d'anno bisexto, Feito
d'amor! Livro novinho!... papel e
testo!... Abra-lhe as folhas sem medo
ao sexto, Abra-lhe as folhas, Padre
Prior!
Caminhavam por fim, ronceiros, de vagar,
Os grandes carro􏿽es da Congrua e P􏿽de
Altar, Puxados a duas mil parelhas de
jumentos, Zurrando esta epopeia heroica
aos quatro ventos:
Senhor Parocho, toda a freguezia,
Uns quatro mil onagros, Muito
magros Vem trazer isto a Vossa
Senhoria. Desculpe, senhor Parocho, a
ousadia... A offerta 􏿽bem mesquinha,
􏿽desgra􏿽da. Uns oitocentos moios
simplesmente De milho, de feij􏿽, trigo
e cevada. E n􏿽 sabemos que um t􏿽 mau
presente Para o seu dente N􏿽
chega a nada! n􏿽 chega a nada! Mas
􏿽boa a inten􏿽o: N􏿽 reservamos para si
o gr􏿽, E para n􏿽 a palha unicamente
Dar ao senhor Prior Miseria assim,
􏿽vergonhoso at􏿽.. Mas aceite este
mimo sem valor... Senhor Parocho
aceite-o, por quem 􏿽... E agora, senhor
Parocho, a sua ben􏿽o, Porque os
onagros pens􏿽 Que ella salva das
chammas infernaes; E em paga de
tal dom, de tal carinho Rogaremos ao
c􏿽 pelo focinho Lhe permitta engordar
cada vez mais. Boa pinga e bom porco
alentejano, E sempre nedio e alegre e
satisfeito!... Senhor Parocho, viva!...
at􏿽p'r􏿽anno... At􏿽p'r􏿽anno... e muito
bom proveito!...
O abade, vendo aquella espandosa ova􏿽o,
Cresceu como uma torre e inchou como
um bal􏿽. E ao mirar-se com garbo heroico
e triumphal Surprehendeu-se de annel e
cruz episcopal! E, impando de vangloria e
atonito de espanto, Inchou mais meia
legua e cresceu outro tanto!
Contemplou-se depois com magestade
ufana, E, oh c􏿽s! viu-se vestido em porpura
romana! Cardeal! cardeal! cardeal! que
honra, que posi􏿽o! E subiu de tal forma
ovante na amplid􏿽 Que o Himalaia, envolto
em suas neves eternas, Disse a um
condor:--Vai ver l􏿽cima aquellas pernas;--
--Cardeal! N􏿽 ser􏿽sonho ou magico feiti􏿽?!
Eu Cardeal!!...--Apertou entre as m􏿽s o
tonti􏿽, E em logar d'um chapeu tingido
com zurrapas, Encontrou o diadema
olimpico dos papas! Papa!... E de tal
maneira ergueu a fronte sua Que com ella
partiu os chavelhos da lua! Em torno do
nariz e 􏿽volta das orelhas Zumbiam-lhe
tremendo os astros, como abelhas. Ser
papa! ser rei do c􏿽 e o rei do mundo! E
l􏿽do alto do abysmo esplendido e
profundo Lan􏿽u o mar e 􏿽terra a sua ben􏿽o
sagrada. E o mar mudou-se em vinho e a
terra n'uma empada! E o colosso voraz, de
v􏿽 coisas t􏿽 bellas, Debru􏿽u-se,
agachou-se, escancarou as guelhas, E
enguliu d'uma vez o assombroso follar,
Bebendo-lhe por cima o vinho todo--o
mar! Depois empanturrado, inflado, um
pouco torto, Atirou-se a dormir mais
pesado que um morto, Arrotando
trov􏿽s..............................
............................................... E em quanto
o abade ronca e grunhe sem cuidados
Dobram plangentemente os sinos
afinados, Cortam o espa􏿽 os ais do estertor
derradeiro, E entre as germina􏿽es frescas
do bom lameiro A 􏿽oa abacial c'oa
respectiva cria, (A quem, se fosse d'elle, o
abade chamaria Afilhada) lanzuda
opipara, pacata, Livre, sem albard􏿽, sem
freio e sem arreata. Na monastica paz dos
ventres satisfeitos Com luserna vi􏿽sa e
tenra at􏿽os peitos Envolta no esplendor
fulvo do sol poente, Mansa, fitando o
azul,--rincha orthodoxamente!
O GENESIS
Jehovah, por alcunha antiga--o Padre
Eterno Deus muitissimo padre e muito
pouco eterno, Teve uma ideia suja, uma
ideia infeliz: Poz-se a esgaravatar co-o
dedo no nariz, Tirou d'esse nariz o que um
nariz encerra, Deitou depois isso c􏿽baixo,
e fez a terra. Em seguida tirou da cabe􏿽 o
chapeu, Pol-o em cima da terra, e z􏿽,
formou o c􏿽. Mas o chap􏿽 azul do Padre
Omnipotente Era um velho penante, um
penante indecente, J􏿽muito carcomido e
muito esburacado, E eis ahi porque o c􏿽
ficou todo estrellado. Depois o Creador
(honra lhe seja feita!) Achou a sua obra
uma obra imperfeita, Mundo serrafa􏿽l,
globo de fancaria, Que nem um aprendiz
de Deus assignaria, E furioso escarrou no
mundo sublumar, E a saliva ao cahir na
terra fez o mar. Depois, para que a Egreja
arranjasse entre os povos Com bulas da
cruzada alguns cruzados novos, E Tartufo
podesse inda d'essa maneira Jejuar, sem
comer de carne 􏿽sexta feira, Jehovah fez
ent􏿽 para a cren􏿽 devota A enguia, o
bacalhau e a pescada marmota. Em
seguida metteu a m􏿽 pelo sovaco, Mais
profundo e maior que a caverna de Caco,
E arrancando de l􏿽parasitas extranhos, De
toda a qualidade e todos os tamanhos
Lan􏿽u sobre a terra, e d'este modo insonte
Fez elle o megatheiro e fez o mastodonte.
Depois, para provar em summa quanto
p􏿽e Um Creador, tirou dois pellos do
bigode, Cortou-os em milh􏿽s e milh􏿽s de
bocados, (Obra em que elle estragou
quatrocentos machados) Dispersou-os no
globo, e foi d'esta maneira Que nasceu o
carvalho o platano e a palmeira.
..................................................
Por fim com barro vil, assombro da olaria!
O que 􏿽que imaginaes que o Creador
faria? Um pote? n􏿽; um bicho, um bipede
com rabo, A que uns chamam Ad􏿽 e outros
Sim􏿽. Ao cabo O pobre Creador
sentindo-se j􏿽fraco. (Coitado, tinha feito o
universo e um macaco Em seis dias!)
pensou:--Deixem-nos de asneiras. Trago
j􏿽uma d􏿽 horrivel nas cadeiras, Fastio...
Isto d􏿽cabo at􏿽d'uma pessoa... Nada, toca
a dormir uma sonata boa!-- Descal􏿽u-se,
tirou os oc'los e chin􏿽 Pitadeou com delicia
alguns trov􏿽s em p􏿽 Abriu, para cahir n'um
somno repentino, O alfarrabio chamado o
livro do Destino. E enflanelando bem a
carcassa caduca, Com o barrete azul
celeste at􏿽􏿽nuca, Fez ortodoxamente o seu
signal da cruz Como qualquer de n􏿽,
tossiu, soprou 􏿽luz, E de pan􏿽 p'ro ar, n'um
repoiso bemdicto, Espojou-se, estirou-se
ao longe do infinito N'um immenso
enxerg􏿽 de nevoa e luz doirada.
E at􏿽hoje, que eu saiba, inda n􏿽 fez mais
nada.
FANTASMAS
I
O vigario de Deus na terra disse um dia
Aos batalh􏿽s do clero: Tragam-me o manto
d'oiro e seda que cobria As espaduas
de Nero.
E trouxeram-lhe o manto, um manto do
brocado, Da purpura mais fina, Com
escarros de lodo obsceno, inda empastado
No sangue de Agripina.
E o papa continuou: 􏿽Preciso armar o bra􏿽,
Para dictar as leis; Fabriquem-me uma
espada enorme com o a􏿽 Das espadas
dos r􏿽s.􏿽
E trouxeram-lhe o gladio. O papa ficou
mudo, N'um assombro d'espectro. De
subito exclamou: 􏿽Ainda n􏿽 􏿽tudo;
Tragam-me agora um sceptro!􏿽
Trouxeram-lh'o. E depois d'um silencio
profundo Rugiu como um le􏿽:
􏿽Tragam-me agora o mundo!􏿽 E
pozeram-lhe o mundo Na palma da sua
m􏿽.
E sopesando o globo e arrancando o
montante Enorme da bainha, Bradou
pela amplid􏿽: 􏿽Sou Jupiter-tonante!
Humanidade, 􏿽 minha!
Eu tenho o gladio e o sceptro, a
excomunh􏿽 e a bulla; Sou o Deus, sou a
F􏿽 Miseravel reptil, Humanidade, oscula
A ponta do meu p􏿽􏿽
E sentando-se sobre o cora􏿽o da Italia
O satrapa romano Estendeu desdenhoso o
bico da sandalia Para o genero
humano!
II
N'esse instante um fantasma entrou nos
regios pa􏿽s. Sereno e formidavel.
Encarou fixamente o rei, cruzando os
bra􏿽s No peito inabalavel,
E trovejou, deixando o papa sacrosanto
Livido, espavorido: 􏿽Sou a
Fraternidade. Entrega-me esse manto
E essa espada bandido!􏿽
Despeda􏿽u-lhe o gladio e a tunica
purpurea, E sahiu triumfal. E o papa
horrorisado, espumando de furia,
Uivou como um chacal:
􏿽N'esta invencivel m􏿽 d'abutre
encarquilhada Guarda o melhor
thesoiro. Ficou-me ainda o sceptro. Era
de ferro a espada... Prefiro o sceptro...
􏿽d'oiro!􏿽
E o papa viu ent􏿽, oh tragica anciedade
Um vulto sobrehumano Avan􏿽r e
bramir:--O meu nome 􏿽Egualdade;
D􏿽me o sceptro, tyranno!--
Quebrou o sceptro e foi-se. E o papa,
como um lobo Sombrio respondeu:
􏿽Na minha forte m􏿽 ainda sustento o
globo... Ainda o globo 􏿽meu!...􏿽
E desatou a rir... um riso sanguinario
De panthera. Depois Surgiu novo fantasma
herculeo, extraordinario, Maior que os
outros dois.
E como o rebentar potente d'um trov􏿽
Que abala a immensidade O fantasma
rugiu:--N􏿽 me conheces, n􏿽!
Chamo-me a Liberdade!
􏿽Venho buscar o mundo. Entrega-o,
salteador! 􏿽meu o globo, harpia!􏿽 E
arrancou-lh'o. Soltando um grito, no
estertor Convulso da agonia,
Tombou por terra o papa. E
repentinamente Viu surgir-lhe do lado
Um esqueleto a rir, todo fosforecente,
Podre, desengon􏿽do,
Que he disse:--Morreu, 􏿽Papa, o nosso
imperio, Morreu o mundo antigo. Tu
chamas-te Alexandre, eu chamo-me
Tiberio... Vem-te deitar commigo!...
E como um ca􏿽dor fantastico que leva,
Sangrenta e moribunda, Uma hyena a
gemer, de rastos, pela treva N'uma
noite profunda,
O esqueleto levou para a crypta sombria
O cadaver do irm􏿽, Indo dormir os
dois na eterna mancebia Da mesma
podrid􏿽!
Post scriptum
Quando eu morrer abram-me o peito E
d'esta jaula, onde houve um le􏿽, Tirem, o
carcere era estreito, Meu velho e altivo
cora􏿽o.
Depois sem d􏿽e sem respeito, Sem um
murmurio de ora􏿽o, Lancem-no assim, vai
satisfeito, 􏿽valla obscura, 􏿽podrid􏿽,
Para que durma e se desfa􏿽 No lodo
amargo da Desgra􏿽, Por quem bateu
continuamente,
Como um tambor que entre a metralha
Estoira ao fim d'uma batalha, Rouco,
furioso, ancioso, ardente!
Nota
Em seguida 􏿽_morte de D. Jo􏿽_ comecei a
escrever um novo poema--_A Morte do
Padre Eterno_,[1] cujo plano completo,
at􏿽aos minimos detalhes, estava de ha
muito elaborado no meu espirito.
Mas em torno d'esta ideia principal
germinou um grande numero de ideias
acessorias, d'onde nasceu um livro novo
_A Velhice do Padre Eterno_, collec􏿽o de
50 poesias, que s􏿽 50 balas que, partindo
de diversos pontos, v􏿽 todas bater no
mesmo alvo.
Em 1879 estava adiantada a _Morte do
Padre Eterno_ e quasi concluida a
_Velhice_.
Uma enfermidade de quatro annos
successivos interrompeu a obra.
Volvendo a saude, voltou o trabalho. O
trabalho nasce espontaneamente da
alegria, como um fructo nasce
espontaneamente d'uma fl􏿽.
Publico hoje o 1^o volume da _Velhice do
Padre Eterno_. O 2.^o, j􏿽na imprensa,
sahir􏿽a luz com brevidade. No 1.^o volume
predomina a satyra, no segundo a
epopeia. Os dois completam-se. A critica,
s􏿽reunidos, os poder􏿽julgar inteiramente.
Creio, se a saude me n􏿽 faltar, que a
_Morte do Padre Eterno_ dentro de um
anno estar􏿽impressa.
E depois de morto D. Jo􏿽 e morto Jehovah,
resta-me resuscitar Jesus e desagrilhoar
Prometheu.
Esse ultimo poema, o _Prometheu
Libertado_, ser􏿽o fecho da trilogia, o
complemento da minha obra.
Terei os annos de vida necessarios para
escrever esse livro? N􏿽 sei; no entanto
rogo a Deus do fundo da minha alma que
me deixe terminar com um hymno de
esperan􏿽 e de harmonia uma batalha de
coleras e de sarcasmos.
O plano est􏿽concebido ha muito. A ideia
􏿽simples e creio que bella. A primeira
parte 􏿽a epopeia do Trabalho, a
glorifica􏿽o de Prometheu pela
humanidade e pela natureza.
Na segunda parte de Jesus Christo,
levantando-se do seu tumulo, vem fulminar
o abutre e desacorrentar Prometheu.
O heroe 􏿽libertado pelo santo. A cren􏿽 e a
sciencia, a ras􏿽 e a f􏿽 depois d'um
combate do milhares de seculos
reunem-se finalmente n'uma paz luminosa,
n'uma communh􏿽 indestructivel.
A liberdade de Prometheu significa o
desaparecimento de todas as tyranias, e a
resurrei􏿽o de Jesus a morte de todos os
dogmas. Um 􏿽a justi􏿽 humana, e outro a
aspira􏿽o immortal para uma justi􏿽
absoluta. O Caucaso e o Golgotha ficam
sendo para a humanidade os dois grandes
altares da religi􏿽 eterna Futuro!
Julho--1885.
Guerra Junqueiro.
Lista de erros corrigidos
Aqui encontram-se listados todos os erros
encontrados e corrigidos:
+---------+--------------------+--------------------
+ | | Original | Correc􏿽o |
+---------+--------------------+--------------------
+ |#p􏿽. 26| da ladr􏿽 | do ladr􏿽
| |#p􏿽. 33| Atrajectoria | A
trajectoria | |#p􏿽. 34| nolte |
noite | |#p􏿽. 59| Daz |
Das | |#p􏿽. 67| haptisados |
haptisados | |#p􏿽. 69| flu'do |
fluido | |#p􏿽. 86| rollar n􏿽 ch􏿽 |
rollar no ch􏿽 | |#p􏿽. 90| Acharam-se
| Acabaram-se | |#p􏿽. 112|
babojar-lhe 􏿽anel | babojar-lhe o anel |
|#p􏿽. 142| feitia | feita |
|#p􏿽. 146| sandalla | sandalia |
|#p􏿽. 147| encar | encarquilhada
| |#p􏿽. 150| espontaneanente |
espontaneamente |
+---------+--------------------+--------------------
+
A indica􏿽o da primeira sec􏿽o dos poemas
"_Como se faz um monstro_" e
"_Fantasmas_" foi adicionada, uma vez que
existia refer􏿽cia a uma segunda sec􏿽o.
Foram efectuadas correc􏿽es no 􏿽dice,
onde os t􏿽ulos de poemas se encontravam
omissos ou trocados e onde as p􏿽inas
indicadas n􏿽 estavam associadas
correctamente.
Todos os _n_ e _u_ trocados, encontrados
no texto, foram rectificados.
Os h􏿽ens "supostamente" em falta n􏿽
foram adicionados.
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Imagination.makes.creation

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