quarta-feira, 8 de agosto de 2012

No sertão da Solidão

No sertão da Solidão


Nasci no sertão de meu Deus, perto de uma curva do Rio Solidão, lá pros lados da Serra da Borborema.
Criado ouvindo o gemido da ema, o mugido do gado faminto e as lamúrias e ladainhas de minha avó.
Filho do nada e de Inalda, moça bonita que partiu para o Rio de Janeiro e morreu no cais do porto.
Assassinada por um estivador apaixonado. Enterro de pobre, vida de pobre, prostituta envelhecida precocemente.
Boi, gado, boiada, fome...
A vida me maltratando com as esporas do destino cravadas no lombo, a mão pesada do patrão, as marcas das amarras e das surras. Moleque matreiro, boi indomável, dei muitas e muitas rasteiras no corisco do azar.
Mas o pequeno boiadeiro cresceu, virou o rei da vaquejada naquelas terras, terras do Coronel Antonio Carlos, velho cruel e protetor.
Os amigos eram protegidos, mas os desafetos, bala e carabina, fuzil e estricnina, morte e sofrimento.
Varrendo todo o sertão da Bahia, égua baia, vida baia, no cocho da esperança, o sal penetra fundo e inunda de sede quem tenta a sorte.
Rei das vaquejadas, meu futuro estava traçado, montando os cavalos bravos e rompendo o sertão de Minas, lá no Jequitinhonha, acabando no mar, como o Riacho que norteava a vida, o riacho da Solidão.
Seu moço, não quero agradar a ninguém, se quiser pode ir embora que não me importo não, mas se quiser me conhecer, é melhor preparar o estômago e agüentar o tranco.
Filho de prostituta e do nada, sou víbora também, não sei suportar arreio, de tanto chicote não temo mais nada, nem a espora dos coronéis nem os anéis das Marias nem das Joanas.
Quero, antes, a liberdade do vento na cara. Essa marca nas costas lembra um A, mas não é marca do gado que não sou mais, é marca do chifre do touro bravo que montei, sangrando.
Liberdade, me falam que estás na bandeira mineira, eu acredito, pois é a minha bandeira, ainda que demorada.
De morada fiz o meu mundo nessa terra sem dono, sem rei, meu reinado.
Meu mundo é o novo, onde não existe mais gado, nem laço, sem cansaço e servidão.
Sem serventia, sem valentia, somente o vento na fuça, o vento tragando tudo. Me inundando de alegria.
Não quero ser coronel, nem quero coronel, não quero jagunço, nem gado e nem montaria.
Quero poder voltar para o Rio da Solidão, buscar minha avó, encontrar Inalda, minha mãe, atravessar o caminho do estivador no cabaret da praça Mauá, quero poder ser de novo um menino, sem marcas e sem esporas.
Quero ser o rei, reinado de menino, reisado e romaria, rota nova, vagando pelo sertão.
Ser tão e tão ser, certo no incerto da vida.
Espera sem espora, sem expor a cara pra tanto tapa. Tapados os olhos, os óleos sagrados de Deus nas costas, onde o A da cicatriz sumiu. Os calos da mão sendo substituídos pelos claros do caminho.
Viver em disparada, sobre meu cavalo correndo pelo sertão, desse reinado sem rei...

MARCOS LOURES

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