EPIDEMIA
Sabia que restavam poucas horas, poucos minutos, era uma questão de tempo. Favas contadas, sabia que não tinha mais escolha.
Recebera a notícia havia muito pouco e essa era a sua última manhã.
Fora a vida inteira um pragmático. Sabia que a morte era inevitável.
Até a desejava, no íntimo.
Daria tempo para arrumar o quarto? Mas, para que arrumar se nunca mais seria seu, se nunca fora e não mais dormiria naquela cama.
Tudo seria incinerado, tudo.
Tinha consciência disso, inclusive fora um dos principais lutadores para que fosse assim.
Seu sacrifício seria a salvação de muitos, mas não de todos. A mulher já tinha ido embora, graças a Deus!
Levara pela mão o filho, única esperança que restava, nada mais.
A cidade estava infestada e sua batalha fora necessária, um sacrifício que, para muitos seria estúpido, mas inevitável.
Contabilizavam-se mais de milhão de vítimas fatais, isso sem contar às milhões e milhões contaminadas.
O homem ainda venceria, como sempre fez, desde tempo imemoriais.
Mas agora, nada mais a dizer nem a fazer.
Tinha que ligar para o centro de controle e sabia o telefone de cor.
Daí para a incineração de tudo e, principalmente, a dele.
Parecia cruel que, em pleno século 21, isso acontecesse. Mas era inevitável.
A morte seria inevitável, morte dolorosa e sem ar, com uma falência múltipla de todos os órgãos e funções.
Morte extremamente dolorosa, melhor seria uma aplicação venosa de cloreto de potássio. Ardia, mas era melhor que a agonia.
Depois, a incineração, o corpanzil reduzido a cinzas. Seus livros, memórias e suas músicas, tudo agrupado numa sacola e enterrada.
Junto com tantas biografias, seria estranho se pudesse entendê-las, ou as conhecer.
Ali, ao contrário dos cemitérios convencionais, não haveria nenhum resquício das diferenças de classe.
Todos sepultados em profundas covas, sem nome, sem identificação.
O telefone tocara e isso o despertou, faria sua última ligação, suicida. Necessária.
A noite trouxe a hemoptise e a epistaxe, a cama ficara rubra, totalmente inundada.
O suor denunciava a febre e o medo apoderara-se.
O laboratório já o havia prevenido, sabia bem o que tinha que fazer.
O antes portador era agora doente e, portanto ativamente contaminante.
Ao atender a chamada, não pode deixar de engasgar.
A mulher e o filho, como sempre, perguntando como estava.
Preferiu mentir, de nada adiantaria a verdade, de nada.
Tudo bem, estou ótimo, cada vez mais forte...
Assim que desligaram, não teve escolha.
“Sim, doutor, sabemos como agir.”
“Espere um pouco, sim, estaremos aí em meia hora.”
Meia hora, tempo para nada, nada...
Tomou um banho e sorriu.
Olhou para cada metro do quarto, numa inútil e insensata despedida.
A porta abriu-se, reconheceu o enfermeiro.
“Vamos lá, sem piedade.”
O fogo ardeu tudo.
Nada restou, nada.
Vazio...
MARCOS LOURES
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