Abgar de Castro Araújo Renault
(Barbacena MG, 15 de abril de 1901
- Rio de Janeiro RJ, 31 de dezembro 1995)
" Encantamento "
Ante o deslumbramento do teu vulto,
sou ferido de atônita surpresa
e vejo que uma auréola de beleza
dissolve em luar a treva em que me oculto.
Estás em cada reza do meu culto,
sonhas na minha lânguida tristeza
e, disperso por toda a natureza,
paira o deslumbramento do teu vulto.
E' tua vida minha própria vida
e trago em mim tua alma adormecida . . .
mas, num mistério surdo que me assombra,
tu és, as minhas mãos, vaga, fugace,
como um sonho que nunca se sonhasse
ou como a sombra vã de uma outra sombra...
1
“ou como a sombra vã de uma outra sombra”
Ou simplesmente assim como se fosse
Imagem do passado que agridoce
Por vezes quem amara ainda assombra.
Ocasos entre sonhos mais felizes,
As sortes se mostrando em nuas faces
Por mais que noutras sendas inda passes
Carregas do que fora, cicatrizes,
Assim a vida é feita e se renova
Mutáveis os espectros que trazemos
E quanto mais em vidas envolvemos
O tempo revolvendo a antiga prova,
E destas somas tantas, o futuro,
Aonde o que não vivo se procura.
2
“como um sonho que nunca se sonhasse”
Revelo-me entre cores mais diversas
E quando sobre o tanto ainda versas
A sorte se mantém no mesmo impasse.
Vencida cada etapa desta vida
Acumulando os erros e os acertos,
Tentando vez em quando alguns consertos
No fundo a minha história revivida
E tudo se transforma no que fora,
Caminho percorrido sabe os pés,
E mesmo quando vejo de viés
Uma alma se persiste sonhadora,
E o caos após o caos se reformula,
Porém a vida usando a velha bula.
3
“tu és, as minhas mãos, vaga, fugace,”
E quando te percebo mais audaz
Às vezes se concebe longe a paz
Por mais que noutro rumo já se trace
A vida feita em ondas beija areias
E teima quando vê novas paragens,
Diversos descaminhos e miragens
Ainda que deveras nisto creias,
Servis os corações dos sonhadores,
Escravizando a sorte a cada passo,
E quando em nova senda me desfaço
Esqueço dos jardins e mato flores,
Mas vejo o mesmo brilho do passado,
Que há tanto sempre tem me acompanhado.
4
“mas, num mistério surdo que me assombra,”
A vida se transcorre em luz e treva
Enquanto a fantasia trama e leva,
Não resta nem sequer mais uma alfombra.
Os traços conhecidos se refletem
No quanto é necessário uma mudança,
Mas quando no vazio já se lança
Histórias conhecidas nos repetem
E o gosto do amanhã diz do que fomos
A soma gera sempre o mesmo zero,
Além do que pretendo ou mesmo espero,
Já não concebo mais dos frutos, gomos
E o prazo do viver já se encurtando,
As esperanças fogem, torpe bando...
5
“e trago em mim tua alma adormecida”
Sabendo decifrar ou não quereres,
E os anos que vivemos têm poderes
De decidirem mesmo a nossa vida.
O quanto se reflete neste espelho
Nas rugas e grisalhos que ganhamos,
Por sermos tão distintos e unos ramos
Por vezes nos teus mares me aconselho,
Porém adormecendo dentro em nós
A fúria de um passado furacão
Nas calmarias todas que virão
A sorte não se faz fera ou atroz,
Vagamos calmamente e sempre assim,
Dois barcos, mesmo norte até o fim...
6
“E' tua vida minha própria vida”
E por termos idênticas paragens
Ao vislumbramos mesmas paisagens
A senda muitas vezes repartida.
Ocasos são iguais, também albores
O fardo dividido fica leve
E o passo mais audaz já não se atreve,
Seguindo pareado aonde fores
Até que chegue ao fim a caminhada,
Momentos partilhados, dor e gozo,
O quanto se faz nulo ou prazeroso
O quanto se faz muito ou quase nada.
Certezas? Tenho poucas, mas eu sei
Que juntos deciframos mesma grei.
7
“paira o deslumbramento do teu vulto,”
Por sobre cada passo que inda dê
Razões para viver, algum por que
Ao dividirmos sempre o mesmo culto,
Riscamos diferenças, ignoramos
As idiossincrasias costumeiras;
Andando juntos; únicas fileiras,
Não somos nem servis sequer dois amos,
E tendo acorrentados o presente,
Futuro dividido diz amor
E quando se colher diversa flor,
Talvez uma aridez já se apresente.
Mas nada me compele à solidão,
Tampouco dentre nós qualquer sertão.
8
“e, disperso por toda a natureza,”
Seguira no passado vária fonte,
Mutáveis os caminhos no horizonte
Assim como inconstante a correnteza,
Percebo quão inútil prosseguir
Se solitário tenho cada passo,
E quando; algum momento inda desfaço,
Percebo bem mais árduo meu porvir.
Tocando o teu caminho eu me encontrei
E assim ao prosseguirmos pareados,
Sentidos muitas vezes aguçados,
Geramos dentre em nós a nossa lei,
Jamais se percebendo algum dissídio,
Revendo a cada dia o mesmo vídeo.
9
“sonhas na minha lânguida tristeza”
Assim como também sonho deveras
Quando te devoram velhas feras,
Gerando muitas vezes a incerteza.
Partícipes da vida em sombras, luzes,
Descreves o que somos num só ato,
E quando noutras vezes me retrato,
É por seguir aonde me conduzes,
Estrelas de uma só constelação
O brilho parecido diz da fonte
Que traça tanta luz neste horizonte
Deixando para trás a escuridão.
Vivemos cada dia em paz, portanto,
Compartilhando sempre o mesmo canto.
10
“Estás em cada reza do meu culto,”
Estás em cada passo rumo ao sol,
Teus olhos me servindo de farol,
A vida se passando sem tumulto,
O quanto te querer me faz tão bem
O quanto me quereres propicia
Raiar de uma sobeja fantasia,
Enquanto belos dias; sinto, vêm.
Perceba então o quanto e necessário
Compartilhamos dores e segredos,
Assim como também prazeres medos,
As roupas se guardando mesmo armário.
E o tempo de viver é que divide
A solidez que amor, quer e decide.
11
“dissolve em luar a treva em que me oculto”
Gerando esta alegria feita em prata
Enquanto dominando me arrebata,
Traçando com clareza um belo vulto
Daquela que se fez a companheira
Mesquinharias mortas, luz estável
Terreno com certeza mais arável
Não há outro caminho que se queira,
Somente o que vivemos e decerto
Não posso renegar o passo claro
E quando tanto amor penso e declaro,
Deixando este portal do sonho aberto,
Alvissareiras luzes no amanhã,
Ao dividirmos sempre o mesmo afã.
12
“e vejo que uma auréola de beleza”
Assumimos estrada tão igual,
O rito que se faz consensual
Permite que se tenha esta certeza
Do dia após o dia em claridade,
Deixando qualquer bruma no passado,
O sonho enternecido desfrutado
Enquanto a voz de um sonho em paz já brade.
Acasos entre ocasos, noites, trevas,
O barco enfrenta em paz os temporais,
Sabendo da certeza deste cais,
Seguro porto ao qual tu sempre levas
A nau que tantas vezes eu pensara
Que em momentos diversos naufragara.
13
“sou ferido de atônita surpresa”
Ao caminhar em meio aos espinheiros,
E neles os destinos verdadeiros
Dos quais sou com certeza frágil presa.
Buscando alguma paz ou lenitivo
Que possa sossegar uma alma aflita
A sorte a sorte se conflita
E tudo o que pensara não mais vivo.
Mas tendo a tua imagem lado a lado,
O corte cicatriza, uma alma aquieta
Vivendo esta certeza tão dileta
O canto se mostrando abençoado
Vencendo os meus anseios, dissabores,
Seguindo cada passo aonde fores.
14
“Ante o deslumbramento do teu vulto,”
Não pude e nem pretendo outro caminho,
Aonde outrora fora mais sozinho,
O coração menino doma o adulto
E sabe das delícias deste amor,
E nele se transforma em plena luz,
Especular beleza reproduz
Gerando dentro em nós mais bela flor.
O peso do viver, se dividido
Tornando-se deveras bem mais leve,
Minha alma sem juízo já se atreve
Envolta pelas ânsias da libido,
Cumprido cada etapa, dia a dia,
Vivendo o que pensara fantasia...
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