sábado, 27 de março de 2010

HOMENAGEM A CAMILO PESSANHA

CAMINHO I

Tenho sonhos cruéis; n'alma doente
Sinto um vago receio prematuro.
Vou a medo na aresta do futuro,
Embebido em saudades do presente...

Saudades desta dor que em vão procuro
Do peito afugentar bem rudemente,
Devendo, ao desmaiar sobre o poente,
Cobrir-me o coração dum véu escuro!...

Porque a dor, esta falta d'harmonia,
Toda a luz desgrenhada que alumia
As almas doidamente, o céu d'agora,

Sem ela o coração é quase nada:
Um sol onde expirasse a madrugada,
Porque é só madrugada quando chora.

Camilo Pessanha




1


“Porque é só madrugada quando chora”
Quando a alma se percebe já perdida,
E nada faz volver ao que era vida
Somente a solidão, e vai embora
Quem tanto perceba um novo dia
Aurora mais distante deste olhar
E quando me encontrando sem lugar
Nem mesmo me dourando a fantasia
Estendo as minhas mãos e nada encontro
Atrevo-me a sonhar, mas tudo inútil,
O amor que tanto quis se fez tão fútil
Traçando tão somente o desencontro,
Vagando pelo espaço sem ninguém
Nem mesmo a madrugada me contém.


2


“Um sol onde expirasse a madrugada,”
Trilhando aonde escuro se mostrou,
Caminho que o vazio transformou
Deixando tão somente o etéreo nada.
Há tanto num mergulho em abissais
Os sonhos produziram um encanto
E agora se percebe num quebranto
A sorte traduzindo-se em jamais
E o gozo que pensara ser possível
Já não sacia mais e nem se sente,
O gosto do passado inda presente
Devora com a fome mais incrível
O quanto se pudesse ser feliz
E tudo o que eu desejo contradiz.

3


“Sem ela o coração é quase nada:”
A fonte da esperança traz ao dia
A força que deveras já me guia
Deixando esta tristeza destroçada,
Mas quando ela se ausenta e nada traz
Somente o desespero toma conta,
E aonde se pensara segue tonta
Perdendo num instante mais mordaz
A sorte de se crer noutro momento
Melhor e redentor, qual primavera,
A morte quando em glória diz espera
Talvez ainda trague algum alento.
Mortalha feita em restos de um amor,
Aos pouco sinto a vida decompor.

4


“As almas doidamente, o céu d'agora,”
Não deixam que se pense de outra forma,
A velha solidão já me deforma
Nem mesmo uma esperança me decora.
O gosto se amargando não permite
Que eu possa ter ainda uma alegria,
O quanto esta tristeza se porfia
Não deixa que se veja algum limite,
E o quadro se tecendo em cores mórbidas
As horas transcorrendo em dor imensa,
Não há quem em verdade me convença
Já que estas tempestades sei mais sórdidas
Vencer os meus temores e seguir,
Talvez quem saiba seja um elixir.

5

“Toda a luz desgrenhada que alumia”
O céu enaltecendo uma vitória
Após a caminhada merencória
Quem sabe mostrará um claro dia,
Adio cada sonho enquanto traço
Com versos o que vivo desde agora,
A paz já noutro porto, pois se ancora
Do amor que desejei sequer um passo,
Dos rastros da ilusão nem mesmo sei,
Aonde uma notícia a mais pudesse
Além do que ora trago em dor e prece,
O amor já não comporta a minha grei,
Em desalento então prossigo assim,
A vida anunciando um triste fim.

6


“Porque a dor, esta falta d'harmonia,”
Jogando o pensamento ao ledo vento,
Não tendo quem perceba o desalento
Também não conheci quem inda guia
O passo deste estúpido poeta
Que tanto procurou felicidade
E agora a solidão cruel invade
E dela o dia a dia se repleta,
Pudesse ter no olhar ainda o brilho,
Mas nada me mostrando aonde eu trace
A vida já que disto desta face
Aonde em paz profunda maravilho,
Bendita solução, mas no veneno
Que bebo em tua boca me apequeno.

7

“Cobrir-me o coração dum véu escuro”
Traçando a fantasia em dores tantas,
Enquanto a cada dia desencantas
Negando o que deveras mais procuro,
Amor sem ter amor não interessa
A quem se fez doído caminheiro,
E tendo a poesia por tinteiro,
A cada novo dia a mesma pressa
De ser feliz impede a minha sorte,
Gerando a solidão que me atormenta
E quando a fantasia eu vejo lenta
Quem sabe alguma voz nova conforte
O quanto desalinha cada passo
O mundo noutro mundo já desfaço.

8

“Devendo, ao desmaiar sobre o poente,”
O sol preconizando nova noite,
Que pelo menos trague enquanto acoite
A sorte dos meus olhos tão ausente,
Mergulho no vazio que me deste
E nele já percebo o temerário
E dolorido mesmo itinerário
Traçando um tempo amargo, duro e agreste.
Aonde se pensara em gratidão,
Somente um desvalido dia a dia,
O medo que deveras se recria
Moldando a cada tempo a solidão,
À qual ao me entregar eu percebi,
Olhar tão traiçoeiro e chego a ti...


9


“Do peito afugentar bem rudemente,”
A fera feita em dores e temor,
Aonde poderia haver amor,
Tumor tomando tudo, já se sente,
Metástases invadem cada canto,
Não posso compreender felicidade
Se a cada novo dia mais degrade
Aquilo que julgara fosse encanto,
Mesquinhos olhos ditam abandono
E teimo contra a força mais cruel,
Distante do meu sonho imenso véu,
Teimando ainda tento e o gozo clono,
Mas nada do que houvera ainda vejo,
A glória se transforma num lampejo.


10


“Saudades desta dor que em vão procuro”
E sinto tomar conta do que penso,
O amor se demonstrara tão imenso
Deixando para trás um solo duro
Aonde não se pode cultivar
Tampouco alguma planta além de abrolhos,
Os medos, os recolho em fartos molhos,
A vida já não sabe mais luar,
Tempestas entre brumas e somente
O mesmo amargo chão se mostra então,
Negando a melhor sorte a cada grão
Aborta-se deveras a semente,
E o tempo de estiagem se prolonga,
A fúria do vazio se faz longa...

11

“Embebido em saudades do presente”
Já não comporto mais qualquer alento,
Aonde perfilara em sofrimento,
Da sorte me percebo tão ausente,
O gozo se transforma em dor e quando
O dia se aproxima, a madrugada
Somente pelo medo, transtornada,
O teto da ilusão se desabando,
Vagando em noites frias, um cometa,
Encontra novamente o mesmo não,
E assim ao se perder a direção
Só resta ao sonhador leda sarjeta,
O corte se aprofunda, imensa chaga,
Quem sabe outra saudade venha e afaga.

12

“Vou a medo na aresta do futuro,”
Translúcida uma imagem do passado,
Presente totalmente consternado
Negando cada luz que inda procuro,
Peçonhas que me adentram, mais diversas
E delas me alimento pouco a pouco
Até que me perceba quase louco,
Seguindo cada passo que ora versas,
Mesquinhos os terríveis caminhares
Que deixas como herança para quem
Sabendo da verdade muito aquém
Destroça da emoção tantos altares,
Arestas penetrando dentro da alma,
Nem mesmo a morte em trevas já me acalma.


13


“Sinto um vago receio prematuro”
E tento disfarçar em poesia,
Mas nada que a sorte me traria
Mostrando a solidão que inda perduro,
Gerando após o nada outro vazio,
Ansiosamente bebo do passado,
O quanto se mostrara destroçado
Traduz o que em verdade ainda crio,
O peso do viver já me envergando,
O medo do futuro ora transcende,
E o quanto sobrevivo só depende
Da glória não sei nem mesmo quando,
Assim se aproximando o meu final,
Quem sabe tenha um gozo triunfal?

14

“Tenho sonhos cruéis; n'alma doente”
E nada além dos mesmos pesadelos,
Cansado tão somente de vivê-los
Persisto num caminho mais descrente,
E teimo contra a força das marés
As farpas penetrando em minha pele,
Às escarpas sombrias já compele
Os sonhos mais temíveis, tais galés
Açodam com terror este andarilho
Que um dia desejara ser feliz
Ausente dos meus olhos o que eu quis
Apenas o vazio ainda trilho,
E nele se prevê a direção
Traçada pelo mesmo e vago não....

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