sexta-feira, 26 de março de 2010

HOMENAGEM A AGRIPPINO GRIECO

" Copo de Cristal "
Agrippino Grieco ( 1888-1973 )
Paraíba do Sul – Rio de Janeiro



Naquele quarto estreito e abandonado,
onde passo estirado na rede,
horas de tédio, enquanto o sol despede
as setas de ouro sobre o campo ao lado,

esquecido num canto, e, da parede
junto, entre flores, vasos, e um bordado,
há um velho copo de cristal lavrado,
em que, às vezes, aplaco a dor da sede.

Contam-me que esse copo pertencera
outrora a uma esquisita e romanesca
jovem, que nele muita vez bebera.

E ainda hoje a extravagar – cabeça louca ! -
se ao lábio o levo, sinto na água fresca
o perfume e o sabor daquela boca...

1


“o perfume e o sabor daquela boca”
Ainda vive em mim, guiando o sonho,
E em cada novo verso que componho,
Presença divinal que me treslouca.

Pudesse ter aqui neste momento,
Os lábios carmesins desta que fora
Razão da própria vida sonhadora,
E nela só por ela, eu me apascento.

Talvez quem sabe um dia, voltarás
Traçando outro caminho a quem se fez
Tomado por total insensatez
Ausente dos meus olhos, rumo e paz.

Quem sabe; ao dissipar em mim tal bruma,
Minha alma também ela, se perfuma...



2

“se ao lábio o levo, sinto na água fresca”
Inesgotável fonte de alegria,
E tendo esta vontade que me guia
A sorte no passado tão dantesca

Agora me transmite paz e encanto
Vivendo tal ternura em lábios feita,
Minha alma com prazeres se deleita
Deixando para trás qualquer quebranto.

Vestindo de ilusão, nada me cala,
Açoda-me esperança e nela vejo,
Um mundo feito em glória e em tal desejo
A glória se mostrando qual vassala

Avassalando em mim tal vendaval
Um êxtase se torna um ritual.


3



“E ainda hoje a extravagar – cabeça louca,”
Rondando constelares maravilhas,
Deixando no passado as armadilhas,
E a sorte que pensara sendo pouca

Agora transbordando dentro em mim,
Mudando a direção de cada vento,
E nela com certeza doce alento,
Perfuma e me extasia tal jardim,

Ascendo ao Paraíso em plena vida
Um anjo em formas belas de mulher,
Singrando qualquer mar que inda vier,
De tantos medos, vejo em ti saída,

E sei quanto é preciso navegar
Quem tanto procurou o imenso mar.


4


“jovem, que nele muita vez bebera,”
As variáveis todas da ilusão,
Agora novos dias mostrarão
Em quão volátil sonho me envolvera.

Percorro as mais sombrias sendas quando
Percebo a solidão que se aproxima,
Uma alma tanto quer, deseja e estima,
Nos antros da paixão se transtornando.

Bebera deste amor a me fartar
Terrível aguardente, vício insano,
E agora no baixar do último pano,
Percebo tão distante este luar

E nele vejo ainda o teu retrato,
E ainda inebriado, eu me maltrato...


5

“outrora a uma esquisita e romanesca”
Estrada me guiara o pensamento,
Vivendo tão somente este tormento,
A vida se fazendo ora dantesca.

Acordo e te percebo junto a mim
E sinto quão florido o meu presente,
Aonde uma alegria se pressente
Renasce com beleza tal jardim,

Aromas mais diversos, delicados
Aonde no passado a podridão
Traçara com terrível solidão
Em áridos caminhos, tristes prados.

Permito-me sonhar e busco além
Sabendo desta luz que amor contém.


6


“Contam-me que esse copo pertencera”
A um velho sonhador que abandonado,
Vivera tão somente amargo enfado
E aos poucos solitário, perecera,

Matando o que deveras existia
Eu posso renovar num breve canto,
E nele com certeza farto encanto
Preconizando assim um claro dia.

Vencendo as intempéries, sigo alheio
Aos meus próprios pecados, meus engodos,
Livrando-me deveras destes lodos,
Adentro o Paraíso em manso veio,

Vislumbro mansamente tais searas
Por onde tanto amor tens e declaras.


7



“em que, às vezes, aplaco a dor da sede”
Signatário dos sonhos mais audazes
Por mais que a vinha tenha suas fases,
Ainda o teu retrato na parede

Demonstra que deveras resististe
Ao quanto se mudou dentro de mim,
E quando te percebo, sinto enfim,
O quanto o meu viver se fez tão triste.

Medonhas caricatas, noites vãs
Descrevem esta vil realidade,
Por mais que o coração ainda brade,
Não vejo no futuro mais manhãs

Ensolaradas feitas com ternura,
Minha alma eternamente, ainda, escura..

8


“há um velho copo de cristal lavrado,”
Guardando dentro em mim cada lembrança
E quando ao meu futuro olhar se lança
Revive cada cena do passado,

Pudesse transformar então meu Fado
Gerando com prazer uma aliança
Teria talvez tido temperança
Aonde se colheu somente enfado,

Recebo a tua voz e nela sinto,
O quanto imaginara estar extinto
Quebrado há muitos anos, pois cristal,

Mas vejo que talvez restando ainda,
A sorte de um amor que se deslinda
Mudando a velha face sempre igual


9


“junto, entre flores, vasos, e um bordado,”
Percebo esta presença que me dita
A sorte mais audaz, densa e bonita
Num ato de prazer nunca pensado,

Vencer os meus temores e sentir
O quanto inda é possível caminhar,
Nas ânsias mais airosas de um luar,
Quem sabe possa ter no meu porvir,

Momento prazeroso ainda vivo,
E nele ser além de um mero porto,
O velho sentimento outrora morto
Ressurge e com certeza mais altivo.

Vencendo os meus antigos vendavais
Encontro estes remansos magistrais...


10


“esquecido num canto, e, da parede”
Ao ver a tua face ainda viva,
Trazendo esta lembrança que me priva
Da mansidão suave de uma rede,

Esqueço cada passo em luz sombria
E teimo contra a força das marés
Sabendo meu amor por quem tu és
A sorte talvez mostre um novo dia,

E eu possa recolher então as flores
Que um dia insanamente cultivara
Tornando bem mais bela esta seara
Permito te seguir por onde fores,

E ter nos rastros teus já bem traçado
Futuro que desejo, abençoado...

11



“as setas de ouro sobre o campo ao lado,”
Permitem que talvez direcione
O rumo aonde a sorte me abandone
Traçando com vigor um novo Fado,

Mergulho neste abismo que deixaste
E traço dele imensa cordilheira,
Por mais que a fantasia inda não queira
A vida me trará raro contraste,

Gerando do vazio a eternidade,
Matando o que talvez ainda exista
Da dor não deixarei sequer mais pista,
Somente uma esperança ora me invade

Deixando adormecida esta tristeza,
Mudando a direção da correnteza.


12


“horas de tédio, enquanto o sol despede”
Jamais eu poderia imaginar
Vencendo a tempestade devagar,
Vivendo a fantasia que concede

A sorte abençoando o dia a dia,
Mudando com certeza a direção
Das horas que o futuro mostrarão
E agora o coração só fantasia.

Chegando ao porto manso e tão seguro
Depois de tantas dias em procelas,
Rompendo do passado velhas celas,
Bebendo cada gota do futuro,

Revejo cada sonho e nele traço
O que transformará em firme passo.

13


“onde passo estirado na rede,”
O tempo necessário pra saber
O quanto se mostrando num prazer
Matando com certeza a minha sede

Vencido pelos ventos, já sofri
Demais e não pretendo outra tempesta,
O coração em viva e plena festa
Traduz o que deveras vejo em ti,

Das feras contumazes e terríveis
Nem mesmo alguma sombra conhecendo,
O tempo me trará tal dividendo
Em sonhos mais reais e tão plausíveis,

Marcando e tatuando em minha pele
O anseio que domina e que me impele.


14


“Naquele quarto estreito e abandonado,”
Aonde imaginara não haver
Sequer a menor sombra de prazer,
Somente e tão somente um duro enfado,

Agora devorando este maná
Que tanto concebera haver em ti,
Do amor além do amor reconheci
O sol que eternamente brilhará

Tornando a minha vida mais suave,
E nela se percebe a claridade
Que agora me tomando já me invade,
Tirando do caminho algum entrave,

Vestindo assim as tramas da esperança
Minha alma em plenitude agora avança...

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