sábado, 27 de março de 2010

HOMENAGEM A CERVANTES

01

“da umbrosa noite no silêncio, quando
Encontros os meus temores frente a frente
O mundo se transforma e de repente
O sonho ora percebo desabando,
Aonde se quisera bem mais brando,
A fúria devastando, tão ardente,
Por mais que uma esperança se apresente
A vida se pressente torturando.
Mas resta alguma luz na madrugada
Qual fora simplesmente luminária
E a sorte que percebo procelária
Deveras noutra face transmudada.
Resisto, tão somente e nada mais,
Umbrosa noite em fartos vendavais...

02

“meigo sono refaz os mais viventes”
Anseios que inda guardo dentro em mim,
Podendo ser feliz, quem sabe assim,
Os dias serão claros e envolventes,
Por mais que novos rumos inda tentes
Percebo raras flores no jardim
Que tanto cultivara e sei que enfim
Os dias não serão mais penitentes.
Assisto ao meu momento benfazejo
E um novo tempo agora já prevejo
Nascendo dentro da alma esta esperança.
Revigorando o passo pelo qual
Consigo alçar a paz que, triunfal
No peito enamorado adentra e avança.


03

“só eu vou meus martírios inclementes”
Nefastas madrugadas solitárias
Aonde se esconderam luminárias
Seguindo sem ninguém, tolas sementes
No solo aonde em glórias mais ausentes
Plantara com paixão, mas temerárias
Manhãs como terríveis procelárias
Cevaram tantas urzes entrementes.
Percorro os descaminhos contumazes
E neles só tristezas tu me trazes
Deixando cicatrizes mais profundas.
E assim ao perceber a invalidez
Do sonho que deveras se desfez
E agora com terror sem paz, inundas...

04

“aos céus e à minha (Diva) numerando”
Perpétuas emoções volvendo à tona,
A sorte dos meus sonhos já se adona
As dores se afastando em tosco bando.
Meu corpo deste sonho se adornando,
A dor que dominara me abandona
Uma alma em paz agora enfim ressona
Enquanto se percebe se alentando.
Vestígios das torturas do passado,
Futuro com prazeres vislumbrado
Enamorado encontro o que decerto
Durante a vida inteira procurara
Manhã se torna bela, imensa e clara
E o medo dia a dia, mais deserto.


05

“quando o dia os seus raios vem mostrando”
Bebendo desta luz que me inebria
Deixando adormecida uma agonia
O coração em paz se demonstrando.
Acerco-me das luzes mais intensas
E bebo desta rara maravilha,
Minha alma por espaços belos trilha
Enquanto neste amor que sonho, pensas.
Ao me entregar sem medo e sem pudores
Jamais me imaginara tão feliz,
E tendo o que deveras sempre quis
Podendo usufruir perfumes, flores,
Matizes de um amor puro e sincero,
Traduzem nesta vida o que mais quero.

06

“dentre as rosas d’aurora auriesplendentes”
A luz iridescente deste olhar
Suprema maravilha a me tocar
Na imensa claridade que apresentes.
Fugazes emoções? Já não as quero,
Desejo ter em ti esposa e amante,
O dia se mostrando deslumbrante
Traduz o que ora sinto e sou sincero.
Percorro eternidade nos teus braços
E vago por sidéreas ilusões
Entranham-se diversas seduções
E assim vão se estreitando nossos laços.
A par deste desejo tens em mim,
Da vida o seu princípio, meio e fim...

07

“com suspiros e lágrimas ferventes”
Expões sublimes rotas pela vida
Não vejo e nem pretendo despedida
No amor que tanto queres, somos crentes.
Apego-me aos desejos e delírios
E deles traço o rumo do viver,
Aonde se encontrasse tal prazer
Deixando para trás velhos martírios.
Sedentos caminheiros vida afora
O amor que a cada instante se demora
Permite um tempo em paz, suave e manso.
Contigo muito além desta emoção
Momentos de ternura e de paixão
Eternos e sublimes eu alcanço...

08

“vou as teimosas queixas renovando”
E tendo nos meus olhos a certeza
De um dia feito em trevas e tristeza
A sorte a cada dia destroçando
O que pensara outrora em bem querer
E vejo a tempestade no horizonte,
Por mais que outro caminho já se aponte
Somente encontrarei o desprazer.
Esgarçam-se ilusões, morrendo aos poucos
O dia a dia passa e nada vem,
Ao perceber a vida sem ninguém
Momentos de alegria? Agora loucos.
Renovo minhas queixas, ninguém vê
Procuro uma emoção, porém, cadê?

09

“se doura o sol a prumo o térreo assento”
E toma este arrebol no qual insisto
Vivendo esta alegria se benquisto
Caminho se expressando em pleno vento.
Não posso me negar a ter nas mãos
Realidade aonde se mostrasse
Além do que se fora algum impasse
Tormentos do passado, amargos, vãos.
E sendo traiçoeira a leda sorte,
Procuro eternizar felicidade
E mesmo que este mundo se degrade
Mantenho neste amor, um vivo aporte.
E quero renovada esta esperança,
Por mais que a dor insista na lembrança...

10


“não me dissipa as trevas da agonia”
O dia a dia feito em dor e pranto,
E quanto mais atroz sinto o meu canto
Felicidade então se faz esguia.
Pudesse ter nos olhos a alegria
Somente o que se mostra, desencanto,
Tocando com terror temível manto,
O luto em plena vida se porfia.
Vasculho pelos ermos de minha alma
Procuro qualquer luz que traga a calma
E nada se mostrando, sigo assim.
Espectro do que fora viva plena,
A morte sorridente já me acena,
Trazendo como alento então meu fim...

11


“dobra-me o pranto, aumenta-me os gemidos”
E nada poderia me trazer
Algum vestígio mesmo de um prazer
Se os dias demonstraram-se perdidos.
O fardo do viver se torna imenso,
Agônica expressão de uma tristeza
Lutando contra a fúria em correnteza
No amor que já perdi ainda penso,
E sei que no final não restaria
Sequer a cicatriz que ora cultivo,
Dos sonhos mais atrozes, vou cativo
Numa explosão de dor, farta agonia.
Quisera ter nos olhos, tolos meus
Aquela que se foi em triste adeus...

12


“volve a noite, e eu com ela ao meu lamento”
Jamais se poderia imaginar
Momento mais feliz a se encontrar
Exposto ao mais terrível sofrimento.
Não pude discernir luz de sombria
Imagem delicada que pensara
Ser sempre iluminada bela e clara
E agora se transforma em fantasia.
Medonhos os caminhos de quem ama,
Terrificantes noites solitárias,
As horas quais nefastas procelárias
Apagam o que fosse mansa chama,
E trago bem aberta em mim a chaga
Somente a morte enfim inda me afaga.


13

“ai! Que sorte! Implorar de noite e dia”
Pelo amor de quem tanto desejara
A sorte se mostrando quase rara
O sofrimento ao longe não se via,
Assim a minha história transcorria
Deixando para trás a dor amara
Enquanto esta ilusão voraz me ampara
Encontro nos teus braços a alegria.
Mas tudo tem seu fim, disso eu bem sei,
Não fomos exceção à dura lei
E a queda deste império então se fez.
Aonde houvera brilho, escuridão,
Inverno dominando este verão
Restando tão somente a insensatez.


14

“ao céu piedade, e à minha ingrata ouvidos”
É tudo o que ora clamo em fim de vida,
A sorte se mostrando já perdida,
Os dias em negrume decididos,
Momentos maviosos esquecidos,
Aguardando em silêncio a despedida
Cultivo sem remorsos a ferida
Risonhos campos nunca percebidos.
E atrozes as manhãs em névoas feitas
Enquanto além do amor tu te deleitas,
Nefasta realidade se traduz
Dos píncaros aos grandes abissais
A vida me responde nunca mais,
E sigo sem saber se existe luz!

HOMENAGEM A MIGUEL DE CERVANTES SAAVEDRA
TRADUÇÃO DE VISCONDES DE CASTILHO E AZEVEDO.

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