terça-feira, 13 de abril de 2010

HOMENAGEM A FERREIRA GULLAR

Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

FERREIRA GULLAR

1

“será arte?”
A sorte
Do corte
Que parte
Reparte
Recorte
Deporte
Descarte.
Assim
Sem fim
A história
Começa
Remessa
Inglória...

2

“de vida ou morte”
Do canto ou luz
Já reproduz
Qualquer suporte
Sem ter mais norte
A vida é cruz
E se me opus
Negando aporte
O beijo, a faca
Navalha estaca
E tudo é nada
Vagando sem
Seguindo aquém
Cada lufada...

3


“que é uma questão”
Do quanto pude
Sem juventude
Matar verão
Noutro senão
Minha alma açude
Por vezes rude
Só negação
Negando o sol
Sonega a vida
Se girassol
Se cata-vento
Por um momento
A despedida...


4


“Traduzir uma parte na outra parte”
Do que tanto seria se não fosse
O corte muitas vezes agridoce
Do quanto pude ao menos um descarte
Sentir o descaminho convergindo
Em outro descaminho segue ao porto
E tanto quanto pude semimorto
Viver ou mesmo crer no quando infindo
Sentindo ou não sentindo, vez em quando
O quadro se aproxima do vazio
Decerto a cada passo se eu me guio
Eu posso ver meu mundo desabando
Ou mesmo reformando a velha casa
Acendo enquanto atento, gelo ou brasa.

5

“outra parte, linguagem”
Outras vezes pudesse
Ou nem tanto tivesse
Ao fundo esta paisagem
E nela nova aragem
Enquanto assim se tece
O preço diz da prece
A sorte da viagem
O canto do não ser
O ser sem ter encanto
Diversa convergência
No tanto em penitência
Ou quase poderia
Assisto ao meu anseio
E dele só receio
A sorte mais sombria...

6


“Uma parte de mim é só vertigem”
Mergulho em precipício, vago tombo
E quando qualquer mundo ainda arrombo
Não levo do passado nem fuligem,
E tanto se pudesse noutro tanto
Viver em carrosséis dores e risos
Talvez fossem menores prejuízos
Quem sabe na verdade ou nada canto,
E tento disfarçar em voz macia
Ou mesmo na calada se inda resta
A face do não ser torpe e funesta
Do quanto tantas vezes poderia,
E assim dicotomia em tons diversos
O mundo cabe inteiro nos meus versos...


7


“outra parte se sabe de repente”
Do quanto não podia, mas atento
E se prossigo mesmo contra o vento
Não deixo que este nada se apresente
Apascentando o quando se pressente
Do verso feito em dor e sofrimento
Ou quando noutro verso busco alento
O quarto se tornando florescente,
Alheio ao que pudesse num instante
Sou vago enquanto vago pelo não
E tendo esta real transformação
Mergulho dentre em mim criando abismo
E sangro até poder já me fartar
Aonde não pudesse te encontrar
Surpreso com mim mesmo, ainda cismo.


8


“Uma parte de mim é permanente”
E nela me transporto em passo firme
Por tanto quanto ainda se confirme
Deveras nada além mais se pressente
E quando da verdade já se ausente
O mundo que talvez a sorte firme,
Sem nada do contrário, reafirme
E assim sigo constante e sem repente,
Assíduo companheiro do mim mesmo
Em poucas variantes me ensimesmo
E sem saber do quando poderia
Exato como fosse bem mais prático
O rosto de um exausto matemático
Expressa o que jamais diz fantasia...


9


“outra parte se espanta”
Com esse meu retrato
Por vezes me maltrato
Enquanto em fúria tanta
Degenerando encanta
Regenerando mato
E tanto quanto fato
O pouco se quebranta
A sorte desairosa
A rosa por consorte
A morte a cada instante
Instante noutro quase
E sigo cada fase
Num ritmo galopante.

10


“Uma parte de mim almoça e janta:”
Enquanto se enfastia já burguesa
Sentada ao esperar a sobremesa
A fome se expressando em força tanta
O quanto do vazio dita a manta
A vida sem sequer saber surpresa
Do quanto poderia não sei presa
Do quanto não se pode e se adianta.
Pacífico deveras cidadão
No nada vejo apenas negação
Prevejo dia sim, começo e meio,
Sem nada que inda possa transformar
O sol redime o frágil do luar,
Mas tanto se divirjo, enfim receio.


11

“outra parte delira”
Navega noutros mares
E busca por luares
Bebendo assim a lira
E quanto mais se atira
Enfrenta os procurares
E quanto diz altares
Expressa falhas miras
Vagando em tempestade
Porquanto quer e brade
Insossegado ser
Se não posso voar
Aonde me encontrar
Se tudo posso ver?


12



“Uma parte de mim pesa, pondera”
E quando se pensando mais audaz
Deveras o caminho se desfaz
Não vejo numa esquina nova fera
E tanto se pudesse em primavera,
Porém se há flor ou não, já tanto faz
O passo nunca foi feliz, mordaz,
Eu sei de onde provenho e o que me espera,
Assisto ao mesmo fato, este espetáculo
A vida não precisa de um oráculo
Repito a velha estrada em ar comum,
O quanto poderia ser além
No todo feito em nada que contém
Ao fim dos sonhos, vejo, então, nenhum.


13


“outra parte estranheza e solidão”
Quando ensimesmado nada falo
E quanto mais atroz a dor me calo
Aonde não pudesse diversão
Não sei se tento rumo ou direção
Verdade não conheço algum estalo,
E sinto quando em ânsia desabalo
O tempo morre em tanta inanição,
Vencido desde sempre quem me dera
Saber do quanto pude em primavera
Se nada no canteiro dita flores,
E quando me percebo em noite fria,
Não tento e nem concebo a poesia
Se há tempos já morreram meus albores.

14


“Uma parte de mim é multidão”
A festa o riso o gozo o regozijo
E quanto mais eu quero e mais exijo
O mundo se mostrando ebulição
Expresso com furor algum vulcão
Altares dos prazeres eu erijo
E peço muito além do quanto aflijo
A fúria se tornando esta expressão,
Risonho camarada, companheiro
O tanto deste ser é verdadeiro?
Respostas não conheço e nem pretendo
Assim assisto ao muito e mesmo pouco
Se eu posso ou se reponho me treslouco,
O tanto que restou serve de adendo.


15


“outra parte é ninguém: fundo sem fundo”
Vagando dentro em mim sou solitário
Aonde poderia solidário
Nas ânsias do vazio me aprofundo,
Apenas traduzindo o quanto em mundo
Vencido pelo sol desnecessário
Trancado com segredos num armário
Reflito o que não sou nem poderia
Se tanto quanto calo a fantasia
Gerando o que não pude perceber
Assim ao me mostrar bem mais desnudo
Enquanto não me venço e não me iludo
Navego pelas ânsias do meu ser.


16


“Uma parte de mim é todo mundo”
E desta multidão que aqui carrego
Porquanto muitas vezes sigo cego
E tanto quanto posso vagabundo
Escudo-me no pouco que aprofundo
Não bebo sequer gota em que navego,
E quando mais atroz, já me renego,
Seguindo qualquer rota, giramundo.
Apátrida caminho, vez por tanta
E quanto se talvez ainda canta
A fonte inesgotável sim ou não,
Aonde não se vê qualquer retrato,
Aonde não se vê além do fato
Ali talvez encontre a tradução...

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