domingo, 11 de abril de 2010

HOMENAGEM A GIUSSEPPE GHIARONI

Giuseppe Ghiaroni
Dia das Mães

Mãe! eu volto a te ver na antiga sala
onde uma noite te deixei sem fala
dizendo adeus como quem vai morrer.
E me viste sumir pela neblina,
orque a sina das mães é esta sina:
amar, cuidar, criar, depois... perder.
Perder o filho é como achar a morte.
Perder o filho quando, grande e forte,
já podia ampará-la e compensá-la.
Mas nesse instante uma mulher bonita,
sorrindo, o rouba, e a avelha mãe aflita
ainda se volta para abençoá-la
Assim parti, e nos abençoaste.
Fui esquecer o bem que me ensinaste,
fui para o mundo me deseducar.
E tu ficaste num silêncio frio,
olhando o leito que eu deixei vazio,
cantando uma cantiga de ninar.
Hoje volto coberto de poeira
e ten encontro quietinha na cadeira,
a cabeça pendida sobre o peito.
Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo.
Quero acordar-te, mas não sei se devo,
não sinto que me caiba este direito.
O direito de dar-te este desgosto,
de te mostrar nas rugas do meu rosto
toda a miséria que me aconteceu.
E quando vires e expressão horrível
da minha máscara irreconhecível,
minha voz rouca murmurar:''Sou eu!"
Eu bebi na taberna dos cretinos,
eu brandi o punhal dos assassinos,
eu andei pelo braço dos canalhas.
Eu fui jogral em todas as comédias,
eu fui vilão em todas as tragédias,
eu fui covarde em todas as batalhas.
Eu te esqueci: as mães são esquecidas.
Vivi a vida, vivi muitas vidas,
e só agora, quando chego ao fim,
traído pela última esperança,
e só agora quando a dor me alcança
lembro quem nunca se esqueceu de mim.
Não! Eu devo voltar, ser esquecido.
Mas que foi? De repente ouço um ruído;
a cadeira rangeu; é tade agora!
Minha mãe se levanta abrindo os braços
e, me envolvendo num milhão de abraços,
rendendo graçs, diz:"Meu filho!", e chora.
E chora e treme como fala e ri,
e parece que Deus entrou aqui,
em vez de o último dos condenados.
E o seu pranto rolando em minha face
quase é como se o Céu me perdoasse,
me limpasse de todos os pecados.
Mãe! Nos teus braços eu me tranfiguro.
Lembro que fui criança, que fui puro.
Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta
que eu compreendo o que significa:
o filho é pobre, mas a mãe é rica!
O filho é homem, mas a mãe é santa!
Santa que eu fiz envelhecer sofrendo,
mas que me beija como agradecendo
toda a dor que por mim lhe foi causada.
Dos mundos onde andei nada te trouxe,
mas tu me olhas num olhar tão doce
que , nada tendo, não te falta nada.
Dia das Mães! É o dia da bondade
maior que todo o mal da humanidade
purificada num amor fecundo.
Por mais que o homem seja um mesquinho,
enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho
cantará a esperança para o mundo


1


“cantará a esperança para o mundo”
O encanto deste amor maior que vejo
Além do grande amor, real sobejo
Na senda em que deveras me aprofundo
Gestando uma esperança sem igual
E dela se bebesse a humanidade
Não haveria algema, corte ou grade
O mundo num cenário triunfal,
Depois de tantas lutas e tempestas
Depois de tantos medos, mundo afora
A sorte em tal seara revigora
Matando cores tristes e funestas
E assim se permitindo esta manhã
Em cores tão diversas, novo afã.

2

“enquanto a Mãe cantar junto a um bercinho”
Alentos para toda a raça humana
E quanto mais assim, for soberana
O mundo se envolvendo em tal carinho
Percebe-se a beleza deste instante
Gerando uma alegria em tez sublime,
Negando a própria morte em atroz crime
O quanto se percebe radiante
O mundo então ausente da injustiça
A fonte incomparável de um amor,
Traçando este caminho, o redentor,
No qual e pelo qual a vida viça
E traz no olhar sereno de quem ama
Eterna maravilha em doce chama.

3


“Por mais que o homem seja um ser mesquinho,”
Por mais que toda a história dite o medo
Ainda uma esperança enfim concedo
E dela se perfaz o meu caminho,
No olhar enternecido de quem ama,
Materna maravilha desvendada
A sorte tantas vezes destroçada
Ainda poderia em mansa trama
Gerar com luzes fartas o futuro
Houvesse com cuidado cada olhar
Tocando este mistério e desvendar
Além do quanto em dor eu me amarguro,
Sentindo a maravilha deste toque
O rio em mar imenso desemboque...

4

“purificada num amor fecundo.”
A vida se transforma plenamente
E quando tendo a luz que se apresente
Deixando para trás o tom imundo
Aonde se mostrando a face escusa
Da dura dimensão que se apresenta
A sorte noutro tanto já se alenta
Do quanto em tom mais claro, antes confusa
Realidade expõe nova faceta
Ainda que deveras fosse um sonho
Do mundo mais tranqüilo e mais risonho,
O amor que noutro amor já se completa
Arisca humanidade nesta teia
Vibrante solução conhece e anseia.

5

“maior que todo o mal da humanidade”
A falta de um amor ditando a guerra
Matando o que restara desta terra
Enquanto a mão feroz tudo degrade,
Riscando a cada dia sempre mais
As marcas do que fora libertário
O amor é tão preciso e necessário
E deles se fazendo em rituais
Divinas maravilhas que se advindo
Do todo feito em glória, riso e pranto
À sorte que nos salve agora eu canto
Sabendo deste encanto, tão infindo,
Materno colo, manso porto quando
O mundo noutro tanto desabando...

6


“Dia das Mães! É o dia da bondade”
Assim como é possível se tentar
O mesmo dia sempre eternizar
Em atitude. É paz que nos invade
E quando me percebo em tez tranqüila
Dessedentando o medo em mansidão,
Angústias, pesadelos, não virão
Enquanto a poesia se perfila
E tenta discernir com calma e glória
O quanto numa mãe se faz mais terno,
A proteção sonega algum inverno
Apóia na derrota ou na vitória
Por si somente assim e nada além
Eternidade em vida ele contém.

7

“que , nada tendo, não te falta nada
Se tu tens a certeza deste amor
Que nada poderia decompor
Nem mesmo a dura e fria madrugada
Aonde se perdendo de algum senso
Vagando por sarjetas tanta incúria
Quem sabe da verdade amarga fúria
E o quanto o mundo gera em tom mais tenso
Ao ver a mansidão do olhar materno,
Percebe ser possível ressurgir
Traçando um libertário e bom porvir,
E nele com o olhar mais manso e terno,
Seguir sem temer pedras no caminho,
Sabendo que não foi nem é sozinho...


8


“mas tu me olhas num olhar tão doce”
Trazendo a mansidão a quem outrora
Ao ser fera terrível a paz devora
Diverso do que tanto quis que fosse,
Medonho pária, espúrio camarada
Nas hordas mais terríveis, tanto infausto,
Amor se oferecendo em holocausto
Permite se creia noutra estrada
Embora tão difícil para quem
Acostumado à fúria quase hedônica
Não vendo noutra sorte mais harmônica
O quanto em maravilha ela contém,
Assim ao me entregar ao teu olhar,
Jardim de uma esperança renovar.

9

“Dos mundos onde andei nada te trouxe,”
Somente as cicatrizes e estas chagas
Que tanto acaricias quanto afagas
O quanto a vida fora em agridoce
Caminho aonde pude discernir
As ondas de prazer e dor imensa,
O certo é que deveras não compensa
A morte prematura do porvir,
Ao retornar a ti, revejo o ninho
Suave aonde um dia eu aprendi
O quanto deste amor que existe em ti
E dele da esperança me avizinho,
Um pássaro sem rumo e sem paragem,
Ao léu em torpe senda, vão viagem...

10


“toda a dor que por mim lhe foi causada”
Deveras não podia ser assim,
O quanto de destroços sei em mim,
Depois de tanto sonho, resta o nada,
Searas mais diversas, dores tantas
Mergulhos no prazer sem ter limites
E sei que em cada engodo ainda existes
Palavras que disseste; quase santas,
Esgota-se o caminho de quem fora
Por vezes um terrível companheiro
A morte, o roubo, a fúria, por inteiro
Matando uma alma outrora sonhadora,
Mas quando a ti retorno, vejo então
Imensidade plena do perdão.

11


“mas que me beija como agradecendo”
O fato da presença deste verme
Que tanto se podia em face inerme
Momento agora lúdico e estupendo,
Não pude te trazer senão a dor
E as marcas do que tanto procurei
Matando, destruindo, contra a lei,
A pútrida presença em desamor,
Arranco dos meus olhos cada imagem
E vendo-te deveras tão feliz,
O quanto desta vida se desdiz
Ao ver a mansidão desta paisagem
Amor domina a fera e em tal remanso
Teu colo, o paraíso em vida alcanço.


12


“Santa que eu fiz envelhecer sofrendo,”
Ao ver-te já grisalha, olhar tão manso,
Certeza de um amor imenso; alcanço
A vida traz um raro dividendo
A quem se fez a fera destemida
A quem se fez mortalha em trevas, tantas
E mesmo que pequena te agigantas
Sanando este terror que é minha vida,
O parto se repete neste instante
De ti renascerá novo menino,
No amor onde deveras me fascino,
No olhar tão complacente e deslumbrante
Renasço para a vida em paz e glória
Refaço em calmaria a tosca história.

13


“O filho é homem, mas a mãe é santa!”
Assim nos meus engodos percebi
O quanto em maravilha havia em ti
Na força deste amor que se agiganta
Gerando uma esperança aonde outrora
A morte se tornando corriqueira,
Mudando neste instante esta bandeira
Enquanto a paz superna me decora,
Vencido pelas ânsias e terrores,
Aonde do jardim gerei daninhas,
E as sendas mais escusas sendo minhas
Jamais permitiriam belas flores,
Audaciosamente quis a morte
E agora em ti, querida, novo aporte.

14

“o filho é pobre, mas a mãe é rica”
Uma alma transparente em tal tesouro
Garante o mais tranqüilo ancoradouro
A sorte nesta senda já se explica
Forjando do vazio uma esperança
Transforma a minha vida num instante
E quanto mais o dia fascinante
Mais forte este calor que em ti se lança
Mortalhas que tecera em tantas brigas
Nefasto caminheiro, súcia, corja
Agora tanto amor, a vida forja
As sendas onde tanto em paz abrigas,
E tendo esta certeza, posso ver
O sol maravilhoso, amanhecer...

15


“que eu compreendo o que significa”
O quanto tanto amor se poderia
Trazer ao mais terrível a alegria
E a vida noutro instante se edifica
Do fardo que carrego, morte e furto
O tempo desvairado em dor e gozo,
O templo que pareça majestoso
Prazer traçado insano, é sempre curto,
E o peso de uma vida em tantas cruzes
Ao nada simplesmente leva quem
Não tendo uma esperança só contém
Momentos feitos trastes, falsas luzes
Medonha imagem viva gera a escara
Enquanto a morbidez já se escancara.

16


“Sim, tenho mãe! E esta ventura é tanta”
Que possa me alentar mesmo se a fera
Ainda resistindo em mim impera
E dela cada dia se quebranta
Não pude discernir melhor caminho
Venturas tão sutis desnecessárias
As corjas, súcias, hordas companheiras
As horas de prazer tão corriqueiras
E delas se percebem procelárias
Que ao penetrar tomando cada espaço
Matando uma esperança benfazeja
Apenas o final já se preveja
No quanto em desencanto ainda traço
O rumo feito em pedras, em espinhos,
Os dias são deveras mais daninhos...

17


“Lembro que fui criança, que fui puro”
Apenas são suaves as lembranças
E quando me percebo em frias lanças
A sorte se transforma em dor e apuro,
O fardo do viver se torna tanto
O quanto em morte e insânia mergulhei,
Mortalha dita então a sorte e a lei
E vendo-me no espelho já me espanto,
Menino tão traquina que hoje em rugas
Marcado pela angústia de uma vida
Deveras tão feroz; atroz, dorida
E nela se mostrando tantas fugas,
O cárcere revivo traça o rumo
E nele cada engodo, em vão resumo.

18


“Mãe! Nos teus braços eu me transfiguro”
E sei quanto é possível ver ainda
Beleza insuperável, pois infinda
Num tempo mais suave, doce e puro.
Nefasta face exposta do passado,
Aonde esta navalha dita a sorte
E quando se percebe em dor e morte
O quanto se mostrasse destroçado
O corpo que carrego, esta mortalha
Que tanto luto e dor, pois, semeara
E tanta fúria toma esta seara
O passo para o inferno assim se atalha,
E tendo-te materna fantasia
A vida noutro tempo se recria.

19

“me limpasse de todos os pecados”
O amor que tanto quero e até procuro
O mundo se mostrara amargo e escuro
Assim imaginara ter os fados
E deles nada tendo em vis terrores
Arcando com meus erros, não sabia
Que ainda poderia ver um dia
E dele reviver supernas flores,
Assim ao perceber tanta pureza
No olhar envelhecido pela dor,
O quanto neste olhar o redentor
Caminho se apresenta e em tal certeza
Cevando a paz que tanto procurava
Minha alma em tanta luz ora se lava.

20


“quase é como se o Céu me perdoasse,”
Ao ter no teu olhar a mansidão
E dela com certeza nascerão
As horas renovando cada face,
E o tanto deste amor que ora conheço
Vencendo as mais cruéis vicissitudes
E tanto que permitas tais açudes
E neles de esperanças me abasteço,
Na vívida impressão de amor tão farto
Não pude disfarçar minha alegria,
Quem tanto em ti querida, já porfia
Os erros e os enganos, pois descarto
E sigo coração aberto à vida
Aonde se pensara em despedida...

21

“E o seu pranto rolando em minha face”
Lavando os meus pecados, tantos erros,
Invés de condenar-me aos vãos desterros
Caminho mais suave que se trace
Gestando enfim a nova primavera
E dela se florindo cada senda
O amor que tanto amor, amor desvenda
Apascentando assim, terrível fera,
Permite que se creia noutros tempos
Aonde a sorte seja mais plausível
Depois de tanto medo em tom terrível
Vencendo em calmaria os contratempos
Alento que ora encontro em voz materna
Gerando a paz que busco: mansa e eterna..


22

“em vez de o último dos condenados”
Eu me senti contigo, o filho pródigo
O amor que tanto mostra em raro código
Os erros tantas vezes perdoados,
Sacrílego fantasma, um verme apenas
Nadando sobre os mares sempre espúrios
Os antros conhecidos, os perjúrios
As noites em terríveis duras cenas
Nefando caminheiro que entre trevas
Um bandoleiro açoda algum passante
A morte nos meus olhos, todo instante
As esperanças mortas, frias levas,
E tudo em ti amada, com perdão
Mostrando inda possível redenção.

23


“e parece que Deus entrou aqui,”
Gerando novo tempo a quem se fez
Na completa e louca insensatez
As rédeas deste mundo eu já perdi,
Morrendo a cada dia em luz inglória
Nefasto camarada em tantas hordas
E quando penetrara a casa pobre
A sorte neste instante me recobre
E como fosse um porto enfim me acordas
E vejo ser possível novo tempo
E vejo mais plausível meu caminho
Em flórea maravilha, morto o espinho
Vencendo com ternura o contratempo.
Quem sabe renascendo neste instante
Quem fora tão somente degradante...

24


“E chora e treme como fala e ri,”
Aquela que trazendo a plena paz
Mostrou do quanto o amor inda é capaz
E dele se percebe tudo aqui
A morte em vida agora ressuscita
Quem tanto se perdera em falsa estrada
A sorte agora viva e desbravada
Moldando nova senda mais bonita,
Searas que tampouco percebera
Com doce mansidão, agora eu vejo
E tendo apascentado o vil desejo
A noite com luar se concebera
E bebo a fantasia do perdão
Sabendo renovada a direção.

25


“rendendo graças, diz:"Meu filho!", e chora”
Quem tanto eu magoei e sem sentido
Deixara simplesmente em tolo olvido
E há tanto desta casa fora embora
Vagando pelas pútridas searas
Matando, seduzindo e da extorsão
Fazendo da desgraça a profissão
Gargalha-se ao terror noites amaras
E delas entre tantas heresias
Forrando com escárnio cada passo,
A morte como símbolo nos olhos
Revive a cada instante mil abrolhos
Enquanto o corte e a dor, sorrindo traço,
Um corvo, um rapineiro, fria gralha
Chacal que entre chacais sempre retalha...


26


“e, me envolvendo num milhão de abraços,”
Ao ver minha chegada a mãe tão pobre
O quanto do cadáver se recobre
Gerando novamente firmes laços
E deles se permite algum alento
E deste alento vejo novo rumo
Caricatura em vida, agora esfumo
E sinto a mansidão, da brisa e o vento
Tocando a minha face me permite
Acreditar no amor sincero e puro,
O quanto do que eu fora já depuro
E tudo se transforma sem limite
Viver a plenitude, finalmente
No amor que me protege e me apascente...


27


“Minha mãe se levanta abrindo os braços”
Trazendo este conforto necessário,
O amor que tanto busca este cenário
Aonde possa ter mais firmes traços
Gestando esta esperança que se aflora
Gerindo cada passo rumo ao tanto
Moldando este momento raro e santo
A vida com ternura se demora
E tudo o que vivera noutras eras
Marcadas por terríveis tatuagens
Agora ao perceber belas paisagens
Do inverno vê surgirem primaveras,
Materna sensação domando então
A fera desumana, no perdão...

28

“a cadeira rangeu; é tarde agora”
O quanto poderia imaginar
A fúria ou mesmo nada a me esperar
O medo tão somente me devora
Ancora o pensamento noutro porto
E vendo o que talvez não queira ver,
Aonde esperaria o desprazer
Recepção deste verme semimorto
Percebo este sorriso e lacrimejas
Nas ânsias de um amor incomparável
Cenário muito além do imaginável
Em belas maravilhas tão sobejas.
E tendo esta certeza dentro em mim,
O amor supera tudo, pois, enfim!


29

“Mas que foi? De repente ouço um ruído;”
Aonde imaginara a negação
O medo se apossando desde então
Ou mesmo a insensatez do frio olvido,
Não posso desejar sequer um riso,
Nem tanto uma palavra acolhedora
O monstro tomando a alma pecadora
Edênica serpente, sem juízo,
Medonhas tardes, noites assassinas
Crepúsculos terríveis tons brumosos
Entre bacantes tantas fúrias, gozos
E as ânsias mais ferozes, minhas sinas.
Mas quando te percebo num alento,
Aplacas este ser tão violento.

30

“Não! Eu devo voltar, ser esquecido”
Pensara no que tanto mal fizera
E vendo num espelha a amara fera
O corpo que em terrores eu lapido,
A senda em desventura, a mais profana
E tendo este retorno ao que já fora
A casa mesmo pobre, acolhedora
Uma alma em plena incúria hoje se engana.
Marcado a ferro e fogo, morte e dor,
Nefanda criatura, verme em vida
Carcaça perambula e sem saída
Retorna com um ar em estupor,
Fascínio que percebo no teu rosto,
Sorriso invés de treva e de desgosto.


31

“lembro quem nunca se esqueceu de mim.”
E tendo esta presença na memória
Quem sabe mudaria minha história
E o sofrimento agora tendo fim...
Vagando pelas ruas imagino
Ainda o cais distante, mas presente
E nele toda a sorte se apresente
Enquanto mudo ou tento o meu destino,
A fera se aplacando, pois quem sabe
Ainda reste ao fundo uma esperança
Nos antros mais profundos da lembrança
O mundo que vivi mesmo inda cabe.
Aonde desabara toda a sorte,
Quem sabe o velho porto me comporte?

32

“e só agora quando a dor me alcança”
Revivo o que pensara enfim extinto
E quando esta ventura; ainda sinto
Renasce dentro em mim bela lembrança
Da sala, dos quintais e primaveras
Das ânsias de um menino sonhador,
E quanto mais me entranho neste amor
Esqueço das andanças podres, feras;
Assim talvez conceba um novo tempo
Vivendo novamente o que foi meu
E a vida, com terror tanto perdeu
Cevando cada espinho ou contratempo
E atento ao vento manso do passado,
À casa cada passo sendo dado...

33

“traído pela última esperança,”
Um fato chama logo uma atenção
Ao crer na imensidade do perdão
Ao mais divino encanto a alma se lança.
E sôfrego percorro estes degraus
Voltando ao meu passado a cada passo,
E quando mais avança, mais refaço
Do porto de outras eras, velhas naus,
Ascendo ao que deveras poderia
Ter sido se esta vida não levasse
A podridão escusa desta face
Gerada pela angústia em agonia
Ser fera dentre feras, a pior,
Caminho que aprendi e sei de cor.


34


“e só agora, quando chego ao fim,”
Depois de tantos erros cometidos
Momentos mais ferozes sendo urdidos
Levando a dor imensa dentro em mim,
Arcando com terrível tempestade
Corsário da esperança um ser venal
A pútrida presença do animal
Que a cada novo corte mais degrade
Exangues os cadáveres que fiz,
Estupros e venais carnificinas
As mortes se aprendendo em oficinas
Carcaças coletadas, infeliz,
E assim ao me encontrar em turva senda
Ao menos esperança ainda atenda...

35


“Vivi a vida, vivi muitas vidas,”
E delas mortes tantas guardo em mim,
À bala, faca, adagas o estopim
Trazendo faces podres e feridas
Num asqueroso rumo e em procissão
Milhares de cadáveres urdidos,
Os passos noutros passos esquecidos
A morte se transforma em profissão
Jagunço, um andarilho em noites fartas
A boca escancarada da miséria
A sorte prazerosa e tão etérea
Jogando sobre a mesa velhas cartas,
Transfigurando assim este demônio,
A vida num completo pandemônio.


36

“Eu te esqueci: as mães são esquecidas”
Prazeres mesmo intensos, mas fugazes
Em passos muito além e tão mordazes
As hordas comemoram as feridas
E quando me percebo em podridão
Mesquinho ser em busca deste hedônico
Caminho que me leve ao falso brilho
Enquanto a morte e a insânia tanto trilho
Num corpo à minha frente um mal já crônico
Senzalas entre fúrias, cadafalsos
A sorte em prostitutas, lupanares
Rondando madrugadas, tantos bares
E a cada novos erros, mais percalços
À bala resolvida uma questão
Mais um cadáver para a coleção...

37

“eu fui covarde em todas as batalhas”
Sangrias dominando este cenário
Tocaias removendo os adversários
A morte se prepara em riscos, falhas,
E tanto se porfia sobre o nada
Amordaçando assim, seqüestro e dor,
O porto a cada instante decompor
O quanto poderia abençoada
Estrada que levasse para o bem,
Sarjetas e riquezas, festas, mortes
Vagando por diversos rumos, sortes
Apenas a mortalha me convém,
Mas vejo ainda a sombra de um passado,
Um porto mais seguro, relembrado...

38


“eu fui vilão em todas as tragédias,”
Um asqueroso verme caminhando
Em ar tão tenebroso quão nefando
A vida toma em fúria minhas rédeas
E sendo assim a podre realidade
De quem, um rufião, um porco imundo
Nos becos, nas esquinas me aprofundo
E a cada nova morte que degrade
Eu tento com sorrisos aplacar
A fome insaciável do poder,
E quando neste espelho posso ver
A cicatriz da vida a se mostrar
Nefanda face exposta da mentira
Ao canto mais atroz a alma se atira.


39


“Eu fui jogral em todas as comédias,”
Bufão que se vestira em tal tormenta
A morte se mostrando me apascenta
E dela se preparam vis tragédias
E destes regozijos mais ferozes,
Medonha face expondo este terror
Aonde poderia haver a flor
Nem mesmo dos infantes mais as vozes,
Negando em bala e foice a melhor sorte
Mesquinho ser caminha entre os piores
E quando o teu olhar inda demores
Verás no meu olhar sinais da morte,
Esfacelando uma alma em tom sombrio,
Rosário de cadáveres desfio...

40

“eu andei pelo braço dos canalhas”
Vagando nos escombros da cidade
A sorte em face escusa pra me invade
E dela se percebem cordoalhas
Atando o que pudesse, mas não veio
Ao quanto sou em face mais atroz
Arrebentando assim os firmes nós
Espalho pelas ruas o receio,
A fonte dos terrores, voz sombria
Do desencanto imenso em vida fútil
O passo sem destino sendo inútil
Apenas se prepara em tal sangria
Matando o que restara dentro em mim
A bruta fera espúria; eu vejo enfim.

41


“eu brandi o punhal dos assassinos,”
Regendo com terror o dia a dia
E tanto sobre a morte se faria
Num eterno dobrar de vários sinos,
Mesquinho este agiota, um torpe pulha
Da corja a mais venal camaradagem
Dos corpos, das rapinas quase um pajem
Virtude? Num palheiro, mera agulha.
À sombra desta vil caricatura
A morte desregrada dita a norma
E quando cada corpo se deforma
A face se transforma e mais impura
Um pária disfarçado entre mil párias
Searas produzidas, procelárias.

42


“Eu bebi na taberna dos cretinos,”
Riscando deste mapa uma esperança
Aonde pude ter torpe aliança
Os dias entre fúrias, pequeninos
O gozo das bacantes, prostitutas
As ânsias entre tantas desvendadas
Palavras tantas vezes malfadadas
Vontades mais atrozes ou astutas,
Resíduo do que fora corvo e fera
Rapina entre carcaças, carniceiro
Da morte a cada instante o mais fecundo
E fero lavrador, ser vagabundo
Por entre tais esgotos eu me esgueiro,
Maldito camarada do não ser,
Nefando verme em busca do prazer...


43

“minha voz rouca murmurar:''Sou eu!"”
E quando se percebe a volta ao lar
O quanto se pudesse imaginar
Do todo que deveras se perdeu
Num átimo a mudança dita a forma
E tudo o que se fora já se esquece
Vivendo prazerosa e rara messe
O amor, somente o amor, pois nos transforma
O quadro que se vê neste momento
Em que se poder ver com claridade
Beleza e mansidão de novo invade
Deixando para trás dor e tormento
É como se eu pudesse renascer
Nas ânsias deste encanto em bel prazer.

44

“da minha máscara irreconhecível,”
Transfigurada face pela incúria
Deveras contumaz a intensa fúria
Deixando no passado a tez terrível
Do quanto em dor e trevas fora feito
Percebe-se a mudança neste olhar,
E quando em novos trilhos soube achar
Um dia mais suave e satisfeito
Regado pela sorte em redenção
Podendo acreditar no puro amor
E dele tal aspecto tentador
Previsto nas entranhas do perdão,
Eu sinto-me decerto um novo ser,
E passo ao próprio Deus reconhecer.

45

“E quando vires e expressão horrível”
Daquele que já fora mais suave
A sorte a cada tempo tanto agrave
Gerando este demônio que implausível
Agora adentra a casa onde nascera,
Criança tão amada e desejada.
Porém a vida molda a fera armada
Diversa da que tanto conhecera
O amor aonde agora dessedenta
Após angústias tantas, dura vida,
E quando se percebe esta guarida
Certeza de aplacar-se tal tormenta
E vivo finalmente esta esperança
No amor que pelo amor, amor alcança...


46


“toda a miséria que me aconteceu”
Certeza de abandono em fúria e gozo,
O quanto no princípio majestoso
Traçando a cada passo imenso breu
E o vandalismo aflora esta verdade
Na podre face escusa da miséria
Arisca tempestade em vil matéria
O corpo a cada dia mais degrade
Uma alma que decerto da pureza
Em trevas e medonhas faces vê
Um mundo sem razões e sem por que
Tolhendo qualquer luz, fria incerteza
E quando a faca adentra o peito inerme
A sorte desvendada em cada verme...

47


“de te mostrar nas rugas do meu rosto”
Sinais do quanto fora em temporal
Aquele ser audaz, atroz, venal
E nele se desvenda este desgosto
Repondo cada coisa em seu lugar
A podridão da face envilecida
Especular fantoche do que um dia
Envolto com carinho e alegria
Pudesse transformar a própria vida,
E não sabendo mais sequer o rumo
Do quanto pode ter e nunca teve,
Apenas a desgraça já reteve
Enquanto cada engodo agora assumo,
E vindo desta pútrida viagem,
Espero nesta casa uma ancoragem...


48


“O direito de dar-te este desgosto”
Depois de tantos anos de abandono,
Retorno como fosse um cão sem dono,
Olhando cabisbaixo, amargo rosto,
Figura caricata, a alma suja
Nos tantos vis covis eu me entranhara
E quando vejo a face mansa e clara
A minha envelhecida garatuja
Envolta pelas tantas cicatrizes,
As marcas do passado, em tais punhais,
O peito destroçado em temporais
Nas mãos marcas tão feras dos deslizes
Aonde não pudesse mais viver,
A morte sendo enfim, maior prazer.


49


“não sinto que me caiba este direito”
De ter sob meus olhos a pureza
Daquela que se dando em tal beleza
Um dia nos meus sonhos fez seu pleito,
Pudesse adivinhar o meu futuro,
Pudesse adivinhar a fera espúria
Talvez ainda assim, sem ter lamúria
Regasse com amor tal solo duro,
E perdoado ou não, mãe eu retorno
Procuro pelo quanto já perdi
E sei que ainda tenho vivo em ti
O amor, que é muito além de algum adorno,
A redenção procuro em teu amor
Mas sei que não mereço este favor...


50

“Quero acordar-te, mas não sei se devo”
Assisto ao teu descanso como fosse
Santificada imagem que tão doce
Permite um sonho imenso e até longevo
Revejo em cada ruga, esta loucura
Que tanto me acompanha desde quando
A casa num momento abandonando
Vivera em mil prazeres a amargura.
Menino que brincava no quintal,
À sombra do arvoredo em luzes fartas
A sorte em viciosas torpes cartas
Traçando este retrato tão venal,
Terrível fera adentra o santuário
Demônio num momento, temerário...

51


“Quero beijar-te a fronte, e não me atrevo”
Chacal apresentando-se ao cordeiro
E quando posso ver, em vão me esgueiro
O peso do passado, trago e levo
Medonhas cicatrizes na minha alma
Espúrio camarada em tantas hordas
E sinto que deveras quando acordas
A tua face ri, e já se acalma,
Não posso acreditar no que estou vendo,
A mansa criatura em alma clara
Ao ver a dura fera se declara
No amor que por amor tão estupendo
Gerando do perdão a eternidade,
Decerto com ternura, uma alma invade...


52


“a cabeça pendida sobre o peito”
A mansidão expressa neste olhar,
O quanto não podia acreditar
E sobre o teu regaço ainda deito,
Mergulho qual criança no teu colo,
Depois dos vendavais tanta bonança
A paz incomparável já me alcança
O mundo em perfeição, ausente dolo,
E sinto-me deveras novamente
Aquele ser pequeno e tão feliz,
Vivendo tanto amor conforme quis,
Deixando para trás o ser demente
Que outrora fustigara em vil açoite
Perambulando louco em cada noite...


53

“e te encontro quietinha na cadeira,”
E sinto quanto posso ainda ver
Ao fim do túnel luz e em tal prazer
Viver a paz deveras derradeira,
Loucura se transforma em mansidão
O morto em vida agora renascendo
Momento fabuloso que desvendo
Gerado por benesses do perdão
Legando ao meu passado o que se fez
Em lúbricos caminhos, morte e roubo,
E tendo neste instante um forte arroubo
Mergulho nos teus braços, lucidez
Carinhos entre tantos beijos, sinto,
E o monstro agora, vejo, enfim, extinto...

54


“Hoje volto coberto de poeira”
As marcas tatuadas nesta pele
O amor que tantas vezes nos compele
Gerando noite imensa e traiçoeira
Levara para longe quem deveras
Sabia deste encanto que há em ti
E tantas vezes louco me perdi
Ao me tornar a fera que entre feras
Devora a própria fera, canibal
Matando por matar, doce vingança
Enquanto ao próprio inferno já se lança
No olhar deste facínora venal
O brilho se mostrando em sangue e dor,
A desventura aos poucos se compor...

55


“cantando uma cantiga de ninar”
Quem tanto desejara algum momento
De paz ao perceber suave alento
Não pode mais seu rumo transmudar
E sinto finalmente o que eu sabia
Há tanto e me perdera em falsas luzes
Ao paraíso eterno me conduzes,
Mas sempre preferira a tez sombria
E dela se sorvendo cada gole
A morte não perdoa quem a bebe,
E sendo tão cruel e audaz tal sebe
Aos poucos o demônio já me engole
E vê no meu olhar seu próprio espelho
Na súcia costumeira eu me aconselho.


56


“olhando o leito que eu deixei vazio, “
Percebo quanto a vida se faz vária
E nela a sorte amarga e procelária
A cada instante mais eu desafio,
Medonha face dita o meu retrato
E nega com terror o que seria
Apenas diamante ou pedraria
E agora seca em mim manso regato,
O verme que lacera qualquer sonho,
Mesquinho camarada, lobo vil
Atocaiada fera, que se viu
Em ar tão tenebroso e mais medonho,
Refeito na criança que deixei,
Na luz de uma esperança eu me entranhei...



57

“E tu ficaste num silêncio frio,”
Ao ver minha partida há tantos anos
Na busca de prazer, ledos enganos
O tempo mais feroz ora desfio
Vagando pelas pedras, espinheiros
Singrando por tempestas prazerosas
Matando o que pudessem velhas rosas
Ainda destroçando estes canteiros
Roubando, ludibrio cada ser
Vertendo em podridão minha viagem
E nela qualquer brilho, tosca imagem
Tesouro sem valia eu pude ver,
Assim fui mergulhar nesta vazia
Seara feita em treva e hipocrisia.

58


“fui para o mundo me deseducar”
A vida não permite a quem deseja
Além do que pudesse e se negreja
O rumo noutro tanto a se mostrar
Medonha face expondo a realidade
E tanto me perdi quanto sabia
Que a cada novo passo a galhardia
Aonde me criara se degrade
Deixando mera escória que caminha
Por entre os espinheiros, turvas águas
E neste emaranhado, tolas fráguas
Gerando a cada passo outra daninha
E rapineiro ser dos rapineiros
O mais feroz e atroz dos companheiros.

59

“Fui esquecer o bem que me ensinaste,”
Matando por prazer, roubando os sonhos
E quando se mostrassem mais bisonhos
Os dias entre trevas e contrastes
Rasgando qualquer corpo em busca de
Prazer ou mesmo insânia, estupro e morte,
Assim ao se mostrar terrível sorte
Além do que deveras já se crê
A pútrida verdade mostra ruas
E delas só se aprende a ser pior
Ensinamentos torpes; sei de cor,
E quanto mais em almas podres, nuas
Retrata-se a verdade desta fera
Maior a tempestade que se gera.


60


“Assim parti, e nos abençoaste”
Mesmo sabendo pútrido o caminho
Que tanto poderia em tosco ninho
Gera a hipocrisia e no desgaste
A corda arrebentando geraria
A liberdade em ares mais funéreos
Os dias a princípio mais etéreos
Transformam podridão em rebeldia
Factóides? Nada disso justifica
A faca no pescoço, a cocaína
A sorte quando assim já desatina
O quanto do passado modifica
Na bala, na senzala no puteiro
O mundo em face escusa, o verdadeiro...

61


“ainda se volta para abençoá-la”
Depois de ter vendido uma alma espúria
E tanto se mostrando na penúria
Adentra com vergonha a velha sala,
Assim não poderia acreditar
Ainda num possível ressurgir
Matando desde sempre o meu porvir
A sorte a cada dia a destroçar,
Mesquinho caminheiro destes bares
Vagabundo canalha, podridão
Um barco sem destino ou direção
Fazendo dos prostíbulos altares,
Vestindo a face escusa da mentira
Apenas a mortalha como mira...


62


“sorrindo, o rouba, e a velha mãe aflita”
Ao ver os descaminhos onde adentra
Com fúria quem a sorte em vão concentra
E trama a cada passo esta desdita
Afundo-me em terrível pantanal
A vida movediça não permite
Que possa se adentrar sem ter limite
Na imensidade feita em lamaçal
Um verme se mostrando em tez sombria
Calhorda disfarçado em ar sutil,
Efêmero prazer descobre então
E tudo transcorrendo em podridão
Deveras do que outrora se previu,
E o vil canalha toma cada espaço
E o quanto me ensinaste já desfaço.


63


“Mas nesse instante uma mulher bonita,”
Ou mesmo a tentadora face exposta
Do quanto a minha imagem decomposta
Não pode acreditar e assim palpita
Satânico cadáver do que fora
No início do viver bela criança
Aonde houvera sombra de esperança
Imagem muitas vezes tentadora,
Apenas o demônio, caricato
E dele novamente se produz
Retalho do que tanto se quis cruz
E neste nada ser onde retrato
A morte ensandecida do menino
Que tanto se mostrara sem destino...


64


“já podia ampará-la e compensá-la”
Mas quando a sorte dita outro caminho
A face do demônio em que me aninho,
A fúria sem ternura me avassala
E deixa como enorme cicatriz
Cada momento inglório que hoje vivo,
Aonde se mostrasse mais altivo
O mundo noutro tanto se desdiz
E o quanto do passado agora morto
E o quanto do futuro nada traz
O rosto caricato e tão mordaz,
Não tendo mais sequer um cais e um porto
Resume a minha história neste pouco
E dele este retrato, atroz de um louco...

65


“Perder o filho quando, grande e forte,”
Gestado com amor e a vida toma
Aonde se pensara em rara soma
Em plena vida vê angústia e morte,
Cenário tão terrível se apresenta
E nele se descobre a insensatez
Diversa do que tanto ainda crês
O corte desta forma violenta
O peso de uma vida feita em luz
Destas vicissitudes vejo o quanto
Romântico caminho em desencanto
Aonde houvera sorte, mero pus
Mortalha da esperança em turva teia
Tecida por terrível mão, alheia.

66


“Perder o filho é como achar a morte”
Ainda que se pense noutros dias,
Porquanto são inúteis fantasias
Nem mesmo o sonha ainda te conforte
Seguindo em tantas trevas, espinheiros
Das pedras feitas perdas nada vêm
Somente esta incerteza vive aquém
Do quanto poderiam teus canteiros
O corte infeccionado, a porta escassa
Imenso turbilhão, tal pesadelo
E como posso enfim aqui contê-lo
A vida não se vive e se esfumaça
No dia a dia, apenas a saudade
Lateja e ferroando nos degrade.

67

“amar, cuidar, criar, depois... perder”
Sabendo que deveras não terá
O quanto sempre amara e desde já
Condena-se ao terror e ao desprazer,
Não posso mais fechar as minhas mãos
Abertas traduzindo a despedida,
Assim ao perceber tão turva a vida
Destino comparável ao dos grãos
Que o vento leva além do meu canteiro
E quando se fecundam refazendo
Momento doloroso ou estupendo,
Assim se renascendo o tempo inteiro
Mortalha representa novo sonho
Enquanto um nasce noutro decomponho...


68


“Porque a sina das mães é esta sina:”
O renascer da vida tão distante
Dos braços que pudessem num instante
Trazer a sorte plena que fascina
Perdendo desde quanto já ganhara
E nesse carrossel o tempo passa,
Aonde se pensara, nem fumaça
Aonde quis a glória resta a escara,
Assim no refazer de cada história
A liberdade gera esta prisão,
E nela novos dias mostrarão
A sina tão querida, mas inglória
O ressurgir da vida exige o fim,
Renova-se deveras o jardim.

69


“E me viste sumir pela neblina,”
Após as asas toscas que criei
Se agora do universo fiz a grei
Mortalha do passado te alucina,
O peso do viver é sempre assim,
A carga se dilui, mas sempre aumenta
E quando noutra vida se apresenta
Início de um terrível, torpe fim.
Morrer e renascer a cada parto,
Viceja noutra flor outra quimera,
E quando ressurgir a primavera
O tempo se mostrando agora farto
Permitirá sementes do futuro
Cevadas neste solo que é sempre duro...


70


“dizendo adeus como quem vai morrer”
Por ter acreditado neste instante
Enquanto o meu passado é degradante
O mundo que virá trará prazer,
Assim ao me despir de cada fato
Vivendo tão somente o meu presente
Rasgando a velha roupa que vestira
Crisálida abandona e deixa em tira
A velha vestimenta e nada sente.
Resiste até que um dia noutra larva
A sorte se refaça e mostre a face
Da vida na verdade que inda trace
Por mais que te pareça mesmo parva
O quanto do passado ainda existe
Somente na amargura, se estou triste.

71


“onde uma noite te deixei sem fala”
Sentada neste banco, olhar distante,
A vida desta forma se agigante
Enquanto de outra vida é vil vassala,
Assim ao se mostrar a face atroz
Do quanto poderia ser diverso
Nascendo para ser sempre disperso
Ainda se ouvirá bem perto a voz,
Por mais que tantas milhas navegaste
Por mais que em tantos sonhos foste além,
Presença de quem foi, decerto vem
O ser e o não estar: mero contraste?
Na casa que ficou ainda é vivo
Quem tanto de outros rumos é cativo.

72


“Mãe! eu volto a te ver na antiga sala”
Presença que eterniza o quanto pude
Viver em alegria a juventude,
E agora tão distante a alma se cala,
O beijo que te dei em despedida,
As lágrimas e o riso de quem segue,
Enquanto a vida sempre em vão prossegue
A cada novo encontro outra partida,
Compartilhar as sortes? Nunca mais.
O mundo se transforma e não permite
O quanto a cada dia outro limite
Expondo nos meus olhos vendavais
E sei que em ti a vida dita o porto
De um tempo tão distante e nunca morto!

Nenhum comentário: