As Metamorfoses do Vampiro
Charles Baudelaire
Tradução: Ivan Junqueira
E no entanto a mulher, com lábios de framboesa,
Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,
E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,
Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho:
- "A boca úmida eu tenho e trago em minha ciência
De no fundo de um leito afogar a consciência.
Sou como, a quem vê sem véus a imagem nua,
As estrelas, o sol, o firmamento e a lua!
Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,
Quando um homem sufoco à borda dos meus lábios,
Ou quando o seio oferto ao dente que mordisca,
Ingênua ou libertina, apática ou arisca,
Que sobre tais coxins macios e envolventes
Perder-se-iam por mim os anjos impotentes!"
Quando após me sugar dos ossos a medula,
Para ela me voltei já lânguido e sem gula
À procura de um beijo, uma outra eu vi então
Em cujo ventre o pus se unia à podridão!
Os dois olhos fechei em trêmula agonia,
E ao reabri-los depois, à plena luz do dia,
A meu lado, em lugar do manequim altivo,
No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,
Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos,
Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos
Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança,
Que nas noites de inverno ao vento se balança.
Baudelaire
1
“Que nas noites de inverno ao vento se balança”
A trágica loucura enfeita cada verso
E sigo sem caminho, ausente ou mais disperso
Distante deste olhar o que fora esperança
A morte me rondando, encontro finalmente
Depois de tanto tempo alento aonde outrora
O medo se expressa e a fúria me decora
Tomando num instante a razão mais premente,
Não posso suportar a ausência da alegria
Aonde em tempestade a vida se traduz,
Escondo o meu olhar até da própria luz
A vida se eterniza em dor e em agonia,
Nefanda realidade afasta-me da glória
A morte já seria enfim, uma vitória.
2
“Ou de uma tabuleta à ponta de uma lança,”
Jogado pela rua, um pária nada vê
Somente este vazio e nele ainda crê
Enquanto a dor açoda e a solidão avança.
Mergulho neste abismo imenso que aos meus pés
Criado a cada instante ainda traduzindo
O que deveras fora, outrora quase infindo,
E trama sem sentido, a sorte das galés
Nefasta criatura, a morte não bebendo,
O medo em minha veia, o gozo mais distante,
A noite em turbulência, a sorte esta farsante,
O peso do viver, inglório e frio adendo,
No quanto poderia um dia não se fez,
Tocado tão somente, imensa insensatez.
3
“Cujo grito lembrava a voz dos cata-ventos”
Deveras retornando ao nada de onde vim,
Sabendo desta ausência, invado e sei por fim,
Que jamais poderei encontrar os alentos
Ao menos quem me dera um dia mais feliz,
A noite se mostrando audaz e mesmo fria,
O sonho a cada instante austero já se adia,
E o beijo do passado, imensa cicatriz
Tatua-se em meu peito, angústia tão somente
O peso desta vida, atroz e sem saída,
Arfante num delírio, o quanto já se acida,
Matando o que seria ao menos a semente
De um tempo glorioso ao nada me remete
O quanto em dor se faz apenas se repete.
4
“Pendiam do esqueleto uns farrapos poeirentos,”
Jogados pela rua, intensa claridade,
Vagando sem destino invade esta cidade
E deixa como rastro apenas os tormentos,
Não pude mais conter a sorte inexistente
E o medo de seguir à lua radiosa,
Enquanto a fantasia, ainda toma e glosa,
O velho coração agora um penitente,
Exposto ao nada ser e nada produzindo,
O manto se amortalha, o corte se agiganta,
A fúria do viver outrora sendo tanta
Transcorre em dor imensa, o tempo sendo infindo,
O sofrimento atroz, jamais terminará,
E o sol que tanto almejo, um dia brilhará?
5
“No qual julguei ter visto a cor do sangue vivo,”
Já não comportaria a dura realidade,
O cetro da esperança esboça este degrade
Do qual eu poderia, ainda sendo altivo
Falar em verso manso e sei que sendo triste
O medo que me açoda, o gozo mais terrível,
O sangue em minha boca, a sorte tão temível.
Insano lutador, eu sei nunca desiste,
Mas sabe muito bem o quanto é doloroso
Caminho em trevas feito, incauto passageiro,
Navega a cada esquina e vê quão corriqueiro
O corte na garganta, o imenso e raro gozo,
E majestoso mesmo, um filho destas trevas,
Persisto em vaga noite, enquanto em vida cevas.
6
“A meu lado, em lugar do manequim altivo,”
Percebo esta figura, em rara jugular
Faminto e desdenhado, o quanto me fartar
E assim a cada noite, intenso sobrevivo,
Bebendo toda gota exaurindo este anseio,
O trágico caminho aonde penetrara,
Já não permitiria a vida sendo clara,
E a vítima se mostra enquanto eu a rodeio,
Nefasta maravilha, alheio aos meus terrores
Percorro cada beco, ausente de uma luz,
A sorte desairosa aos poucos me conduz,
E nela tão nefando, abrigo amargas flores,
Esgarço cada fonte, e traço este vazio,
Aonde em gula imensa, eu mesmo me recrio.
7
“E ao reabri-los depois, à plena luz do dia,”
Percebo a dor imensa intensa claridade,
O quanto em turva senda ainda alto se brade
O sonho na manhã deveras já se adia,
Porfio em turbulência e traço o meu futuro
Em vias mais sutis, e quando assim procedo,
O tanto do passado ainda dita o enredo
De quem vive somente em ar sombrio e escuro,
Num pêndulo o viver em luzes se desfaz,
O quanto poderia e sei ser muito além,
Da treva que eu adoro e nela se contém
O gozo mais atroz, talvez o mais mordaz,
Satisfazendo enfim, glutão, mesmo asqueroso,
Da podridão, do sangue encontro o fino gozo.
8
“Os dois olhos fechei em trêmula agonia,”
Deveras poderia ao menos ter a chance
De crer noutro momento aonde a sorte avance
E ao menos conhecer a bela poesia,
Mas nada disso posso, e enfrento a minha sorte
Com toda morbidade e nela com audácia
Alimento divino, um néctar feito hemácia
Quem vive tão somente assim da alheia morte
Conforma-se no ser eterno em treva tanta
E quando mais procura, encontra com fartura
O gozo desejado, em noite sempre escura,
E quanto mais deseja assim já se agiganta,
A senda feita em sangue e pútrida verdade,
Ainda que feroz, com gozo ora me invade.
9
“Em cujo ventre o pus se unia à podridão”
Regando com prazer o olhar mais rapineiro,
O encanto desta cena, um gozo verdadeiro,
E nele se percebe as ânsias da emoção
Deveras o que eu quero a cada noite traz
O olhar frio e venal, que tanto desejara
Numa ânsia sem igual exposta cada escara
A fúria que ora anseio, aos poucos tão mordaz,
Tomando cada cena, auspiciosamente
E o quanto se deseja, ao menos se mostrando
Sanguínea maravilha invade e me tomando,
Só deixe que eu perceba a morte que pressente
Trazendo plena vida a quem deseja tanto,
O gole deste sangue, um ar atroz e santo.
10
“À procura de um beijo, uma outra eu vi então”
Desnuda em colo branco, uma delícia a mais,
Expondo em raro gozo, em ares divinais,
Ascendo num instante a toda podridão
Revela-se o prazer e nele me entranhara,
Um furioso sonho imerso em tal loucura
Cessando neste instante o que fora procura,
A sorte desenhada exangue cena ampara
Vertendo a jugular em lúbrico desejo,
Sensualidade plena, angústia delicada,
E nela se porfia em toda a madrugada
O que deveras sei, além do que prevejo,
Maravilhosamente o fogo do prazer,
No gozo desta insânia, em sangue a se verter.
11
“Para ela me voltei já lânguido e sem gula”
Após ter saciado a sede que me impele,
Acaricio então a doce e bela pele,
E o olhar tão mansamente o corpo pasmo ondula
Orgástico delírio em frágeis, mas tenazes,
Momento em que percebo ansiedade plena
Assim ao ter no olhar o gozo que serena,
Diverso do que outrora ainda noutras fases
Pudesse imaginar a torpe criatura
Que tanto se encontrara às vésperas do sonho
No qual a cada instante além já me proponho,
Na senda fabulosa expondo-se à loucura,
E dela se sorvendo a gota mais atroz,
E tendo esta certeza, eternizando os nós.
12
“Quando após me sugar dos ossos a medula,”
Desejo sensual, angélica tortura,
Bebendo até fartar, cessando esta procura,
A cada novo instante, o quanto já se engula
Do gotejar divino, ansiedade imensa,
Vencendo o dissabor, ausente do vazio
A intensa maravilha assim quero e porfio
Orgástica paixão e nela a recompensa,
Açoda-me o demônio e dele já surgindo
Um gozo em sacramento, um êxtase sobejo,
E quando num espasmo encontro o que ora almejo
Momento se mostrando intensamente lindo,
Alvissareira noite ao máximo se erguendo,
O fogo se desvenda em ar tão estupendo.
13
“Perder-se-iam por mim os anjos impotentes”
Satânica vontade invade cada ponto,
E quando se percebe o gozo, quase tonto,
Por mais que inda relute, invado corpos, mentes
E sagro este momento à glória de Satã
Tornando a minha vida envolta na neblina
Que tanto te seduz, enquanto me alucina,
Negando qualquer luz, impede uma manhã
Noctívago cantor, em cruas serenatas,
Orgasmo após orgasmo, ensandecido creio
Na glória que se vê a cada novo anseio,
E nele toda a fúria, e nela te arrebatas
Moldando sensual cenário onde se vê
O quanto é fabulosa a vida sem por que.
14
“Que sobre tais coxins macios e envolventes”
Deitando com langor, astuciosa face,
Por mais que ainda creia ou mesmo ao longe passe
Cravando neste colo os afiados dentes,
Bebendo a me fartar, não posso mais deixar
De ter tanto prazer no amor que agora sinto,
Vulcânico delírio outrora em dor extinto
Espalha sobre a terra a fúria a me tomar,
Deixando para trás o medo do não ser
A vampiresca sorte, agora se porfia
Gerando neste olhar insana fantasia,
E nela a podridão aos poucos se verter,
Gerando imensidade aonde quis tal glória
A vida não seria atroz nem merencória.
15
“Ingênua ou libertina, apática ou arisca,”
Não importando mais o rumo desejado,
Apenas se sabendo o quanto saciado
Quem tanto propusera a vida mostrando isca,
Na sorte mais audaz, o gozo proferido,
E tudo se desnuda em noite antes malsã
E agora se louvando à glória de Satã
Caminho delicado, em sangue percorrido,
Demônios vejo então em célere festança
A sorte se desnuda em tanta maravilha,
E o coração mordaz, seguindo cada trilha,
Aos poucos o infinito, encontra e logo alcança,
Nefasta natureza em lúbrica loucura,
Sorvendo gota a gota após tanta procura...
16
“Ou quando o seio oferto ao dente que mordisca,”
Escassos, pois, outrora, agora em farta mesa,
Encontro o que bem sei audácia em tal beleza,
A morte desconheço, a sorte mesmo arisca
Adentra em cada veia e nela se perfila
Prazer que tanto quero entranha-me deveras
E nele se expressando a volúpia das feras,
O sórdido prazer, o olhar quer e destila
Mereço muito além do gozo sensual,
Querendo cada espasmo e nele me aprofundo,
Galgando neste instante o mais profano mundo,
Matando a minha sede, intenso ritual,
Arcando com a fúria insana e desejada,
Avanço em tez sombria imensa madrugada...
17
“Quando um homem sufoco à borda dos meus lábios,”
Diversa transfusão, bebendo gotas tantas,
E quando me percebo em faces quase santas
Olhando para trás ausência de astrolábios
Destino se moldando em cores mais sanguíneas
Esgueiro-me na noite e volto ao meu castelo,
Aonde em tez sombria ao nunca me revelo,
Sonhando com delírio em formas longilíneas
Daquela se fora a doce criatura
Mulher deliciosa em ares tão profanos,
Anseios tão gentis, e assim mais soberanos,
Gerando dentro em mim total, vital loucura,
E saciada a fome encontro em languidez
Desnuda a bela dama imersa em gelidez.
18
“Tão douta na volúpia eu sou, queridos sábios,”
Dizia aquela sombra em forma sensual,
Fazendo do prazer insano ritual,
Caminho percorrido, envolto por tais lábios,
Delírio sem igual, profana esta ventura
Que tanto desejei e encontro em tua pele,
Aonde tanta fúria aos píncaros compele
Na noite feita em treva, imensa e tão escura,
Gerando este desejo ao qual me entrego tanto,
O corpo seduzido, imensa tempestade,
Ainda que se vê o quanto se degrade,
Tocado sem perdão, ausente o desencanto,
Propaga-se a vontade e dela me transbordo,
Do sonho mais audaz, eu nunca mais acordo.
19
“As estrelas, o sol, o firmamento e a lua”
Vislumbro da janela após anseios fartos,
E quando se percebe imerso nestes quartos
A imagem delicada, ansiosamente nua
Daquela a quem me entrego e não sonego o gozo,
O templo feito em treva ascende ao Paraíso,
Num toque mais audaz, portanto mais preciso,
O tempo se tornando assim maravilhoso,
Jamais eu poderia além deste caminho,
Saber outro caminho aonde insanamente
O quanto insensatez deveras se pressente,
E nesta audácia plena eu quero e já me aninho,
Vivenciando então fartura em louca tez,
Aonde o dito amor, deveras já se fez.
20
“Sou como, a quem vê sem véus a imagem nua,”
Falava-me a mulher desnuda no meu leito,
Açoda-me a vontade e nela satisfeito,
Uma alma ensandecida, aos poucos já flutua
Neblina toma a cena e dela me fartando,
A fúria natural esvai-se pouco a pouco
E imerso em corpo frio, intenso me treslouco,
E o sensual, profano, intensamente brando
Gerando nova senda a qual me entrego e sei
Que tanto se demonstra o rumo que buscara
Ainda que talvez mais viva a chaga e a escara,
Dourando em tez sombria a sorte desta grei,
Na qual me saciara e nunca me sacio,
E a cada madrugada, em ânsias desafio.
21
“De no fundo de um leito afogar a consciência”
E trazendo agora à tona a imensa maravilha
Deveras coração aos poucos segue a trilha,
Deixando para trás o que fora clemência,
Satânico prazer alvissareira sorte,
Um mergulho sem volta envolto em treva tanta
Imagem delicada, ao mesmo tempo santa,
Deveras traduzindo o quanto me conforte
A imensidade exposta em bela e vã nudez,
Aonde tanta glória explode sensual,
A fonte nunca seca, e embora sem igual,
Traduz o que se quer e mesmo o que não vês
Anseio do imortal em trôpego caminho,
Ausente deste encanto, o que fazer, sozinho?
22
“- "A boca úmida eu tenho e trago em minha ciência”
A vontade incessante em sangue transformada,
A sorte se traduz em toda a madrugada
Gerando sanguinária angústia e penitência.
Nefasto caminheiro às sombras vou entregue,
E nada me seduz além deste poder,
Da sede que matando, explode-se em morrer,
Não tendo quem ainda a fúria já sossegue,
Satânico caminho ao qual eu me perseguira
Vivendo tão somente a dor que vejo em ti,
Vibrando em cada gota a mais do que sorvi,
Acesa dentro em mim, vontade feita em pira
Jamais se apagaria, a vida sendo eterna,
O corte se aprofunda a morte já se hiberna.
23
“Dizia, a voz imersa em bálsamo e tomilho”
Do quanto é necessário o gozo mais audaz,
E tanto se porfia enquanto já me traz
Ansiedade plena, aonde quero e trilho
Tocando este delírio aonde me perfaço
Distante do vazio onde perceberia
A claridade imensa, ausente deste dia,
A morte penetrando invade cada espaço,
E nada se traduz além deste sombrio
Caminho percorrido em noites, madrugadas
As ânsias sem igual, vontades saciadas,
O quarto em trevas feito, imensidão do frio,
E o peso do viver, eterno e sem final,
Banquete que ora exaure a vida de um mortal.
24
“E o seio a comprimir sob o aço do espartilho,”
Daquela criatura a quem eu me entregara,
Além do permitido, a vida sendo escara,
Deveras me trazendo insólito, o seu brilho,
Quem trevas conhecera e delas me alimento
Ao ver tanta beleza, em alvo e raro colo,
Ainda que imortal, aos poucos me descolo
E sigo a tempestade entregue ao forte vento,
Profiro sonho audaz, e gozo cada instante,
Por mais que não pudesse, ainda quero mais,
O quanto amor se trama em tantos vendavais,
Trazendo ao vampiresco o sonho deslumbrante,
Mordaz e tão cruel, o gozo de uma vida
Que possa ter um fim e nele a despedida...
25
“Coleando qual serpente ao pé da lenha acesa,”
Percebo-te desnuda, incrível criatura
Que leva-me sem dó às raias da loucura,
O caçador venal, agora mera presa.
O pânico tomando o coração mordaz,
A sorte se desenha em rumo diferente,
E mais do que pensara uma alma não pressente
Aquilo que o amor, aos poucos já me traz,
Tornando-me mortal matando pouco a pouco,
E o quanto se queria, eternidade, há tempos
Envolta pela fúria enormes contratempos,
Deveras nesta insânia, enquanto me treslouco,
Minguando minha vida angústia gera o medo,
E como fosse um tosco, ao amor me concedo.
26
“E no entanto a mulher, com lábios de framboesa,”
Domando a fera imensa, um ato mais venal,
O amor me destroçando em ar tão sensual,
De um imortal caminho, a morte traz certeza
E o quanto desejara um ato mais audaz,
Agora em morte plena, o fim se aproximando,
O quanto da esperança em torpe e tosco bando
E incrível que pareça assim me satisfaz.
Aonde houvera glória, o medo já me invade,
Amor sem ter limite, a fúria além do cais,
E aonde houvera manso, imensos vendavais,
E aonde houvera luz, terrível tempestade,
A morte se aproxima e redime os engodos,
Só restará no fim os toscos, vagos, lodos...
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